"A vida faz mais do que se adaptar à Terra; ela a modifica. A evolução é uma dança bem engendrada na qual a vida e o ambiente material formam um par. Dessa dança emerge a entidade Gaia." (James Lovelock)

Introdução

Um dia, a Mãe Natureza entrou para o debate científico na forma de uma ideia inovadora: a Hipótese de Gaia¹. Mas quando o pesquisador James Lovelock escolheu o nome de Gaia, a deusa grega que representa a Terra, para nomear sua teoria sobre a composição da atmosfera terrestre, muitos de seus pares o criticaram. Ele relata em sua autobiografia que a comunidade científica se incomodava mais com o uso de uma metáfora de origem mitológica do que com a teoria lançada na década de 1970 (LOVELOCK, 2001), por mais que a referência ao mito grego servisse bem ao seu propósito de descrever a Terra como um sistema fisiológico autorregulador, capaz de manter as condições climáticas e químicas em um estado propício para a vida (LOVELOCK, 2006).

A imagem de Gaia, que embasa uma visão holística do planeta, implica que todos os seres vivos, desde microorganismos até grandes animais, fazem parte de uma entidade ainda maior e mais diversa: a Terra viva. O que não só desafia uma perspectiva individualista, como também ampara a crítica feita pelo cientista a uma lógica científica reducionista, que consistiria na dissecação analítica de um objeto nas partes fundamentais que o compõem, seguida pela sua remontagem (LOVELOCK, 2006). Segundo ele, a especialização da ciência em inúmeras disciplinas diferentes é um dos fatores que dificulta a obtenção de uma visão coesa da Terra, a ponto de somente em 2001 o planeta ter sido reconhecido como entidade autorreguladora por uma comunidade internacional de cientistas, na Declaração de Amsterdã² (IGBP, 2022) .  

Por ser um defensor do pensamento sistêmico, James Lovelock recorreu ao mito para romper com uma visão do planeta que considerava limitada, sugerindo que desde que a vida na Terra teve início, há mais de três bilhões de anos, ela controla sua temperatura e composição para se manter “confortável”, como uma forma de vida (LOVELOCK, 2006). Demonstrando a força dos mitos, a imagem de Gaia inspira ativistas que também usam metáforas como uma estratégia de comunicação, com o objetivo de mobilizar pessoas para evitar que as “forças de Gaia” se voltem contra a humanidade na forma de desastres naturais devido à mutação climática, além de outras causas de origem antropogênica. 

A teoria de Gaia é um exemplo de como a imagem arquetípica da Grande Mãe serve ao movimento ambientalista, não só questionando as bases da sociedade ocidental como também propondo novas metáforas para sua reelaboração. As forças inevitáveis da deusa são uma forma de traduzir os índices alarmantes dos gases de estufa e aumento de temperaturas, característicos do aquecimento global, que colocam em risco o meio ambiente de todas as espécies. Ao romper com uma visão de mundo antropocêntrica e sua lógica sujeito-objeto, a imagem de uma Mãe Natureza serve para defender a concepção da Terra como sistema interdependente, no qual humanidade e natureza se reconhecem como parte de um todo maior. O que também contesta as bases patriarcais, judaico-cristãs e humanistas da sociedade ocidental, que afirmam os recursos naturais como um direito da humanidade (LOVELOCK, 2006).

Em "O Poder da Identidade", o sociólogo Manuel Castells (2018) afirma que o pensamento ecológico e o movimento ambientalista, por mais que se apresentem na forma de variadas orientações políticas e origens sociais, são dotados de uma coerência própria, unidos por um ponto comum: associam a defesa de ambientes específicos a novos valores humanos. Ao se debruçar sobre o tema, Castells (2018) distingue “ecologia” e “ambientalismo”: a ecologia, além de ser uma ciência estabelecida na área de biologia e possuir variações nas ciências sociais, é definida pelo autor como uma perspectiva holística, sistêmica, fundada em crenças e teorias que afirmam os seres humanos como parte de um ecossistema mais amplo, visando o equilíbrio deste sistema; já o ambientalismo consiste no comportamento coletivo que busca combater as formas destrutivas de relacionamento entre a humanidade e o seu ambiente natural, contestando a lógica dominante. Nas palavras dele, "o ambientalismo é a ecologia na prática, e a ecologia é o ambientalismo na teoria" (CASTELLS, 2018, p. 225). 

De acordo com Castells (2018), o ambientalismo teve um impacto maior nos valores culturais e instituições sociais do que outros movimentos sociais na segunda metade do século XX. O movimento, inicialmente mais forte nos EUA e Norte da Europa, propõe uma nova forma de pensar a relação entre economia, sociedade e natureza desde o seu surgimento na década de 1960, defendendo o desenvolvimento de uma nova cultura. Assim, o ambientalismo se opõe aos interesses do industrialismo, do capitalismo, da tecnocracia e da burocracia, e as suas críticas ao domínio da vida pela ciência são também uma defesa da vida. Os seus princípios defendem que a vida seja guiada por um conhecimento superior, uma visão holística que enxergue além das abordagens e estratégias que vigoram, limitadas por buscarem somente a satisfação de necessidades imediatas (CASTELLS, 2018). 

Uma das tendências do movimento ambientalista é denominada por Castells (2018) de “Save the planet”, tendo como maior representante o Greenpeace. Essa tendência se destaca por defender não só a sustentabilidade, como também o internacionalismo em prol da causa ecológica, estabelecendo como adversário o desenvolvimento desenfreado. Consolidada como a maior organização ambientalista do mundo, há mais de cinco décadas o Greenpeace é reconhecido por dar visibilidade a questões ambientais por meio de ações diretas e orientadas à mídia (CASTELLS, 2018). 

O Greenpeace surge no fim dos anos 1960, no contexto de uma manifestação antinuclear na costa do Alasca, mas se fortalece nos anos 1970 em meio a protestos contra testes nucleares no Canadá. Oficialmente fundada em 1971, em Vancouver, sua sede foi posteriormente transferida para Amsterdã. É uma organização transnacional e altamente articulada, que se distingue por sua atitude pragmática, empresarial, que "faz as coisas acontecerem", bem como a atitude de testemunhar os fatos, tanto para ação quanto como estratégia de comunicação (CASTELLS, 2018). 

Contra o desenvolvimento destrutivo, o Greenpeace defende que a sustentabilidade ambiental deve reger todas as políticas e atividades humanas, e, por considerar o Estado-Nação como o maior obstáculo ao seu objetivo, seus membros são declaradamente internacionalistas. Com uma organização mundialmente descentralizada, seus recursos são organizados na forma de campanhas que abordam diferentes questões ambientais, como "ecologia oceânica", "ecologia terrestre", "recursos energéticos e atmosfera" e "questões nucleares". A coordenação das campanhas globais fica a cargo de escritórios sediados nos países em que o Greenpeace atua, angariando fundos e obtendo apoio, e a maioria das ações visam causar um impacto global, uma vez que as principais questões ambientalistas são mundiais (CASTELLS, 2018). 

Ao se destacar por sua ampla atuação "nas fronteiras entre a ciência à serviço da vida, a formação de redes globais, a tecnologia da comunicação e a solidariedade entre gerações" (CASTELLS, 2018, p. 232), o Greenpeace investe em ferramentas de comunicação para sensibilizar e mobilizar a opinião pública em favor da preservação do meio ambiente. Entre elas está o storytelling, que o Greenpeace defende como uma ferramenta crítica para a resistência e o progresso. Em uma página do site oficial da organização, inclusive, é mantido um projeto que incentiva o compartilhamento de histórias, disponibiliza materiais e divulga as vantagens do uso do storytelling como estratégia de comunicação, em especial para iniciativas que visam a conscientização ambiental (GREENPEACE, 2021). 

O ato de contar histórias, ou storytelling, é uma das formas de comunicação mais antigas da humanidade, afinal, desde que aprendem a se comunicar os seres humanos se reúnem para ouvir e contar histórias. Por meio da criação de narrativas, os povos se tornaram capazes de representar o mundo, apropriando-se do que observavam da natureza, mas ainda não conseguiam explicar. Ao organizar essas observações em uma nova realidade, foi desenvolvido o pensamento mítico (CONTRERA, 2002). Narrativas compõem a cultura dos povos, a identidade dos indivíduos, e por meio delas é possível alcançar algo que os une: um senso de pertencimento. Essencial para a cultura, definida como uma determinada organização dentro de uma esfera de atividades humanas, que pressupõe o processamento de informações e a posterior organização delas em algum sistema de signos (MACHADO, 2003; CAMARGO, 2011). 

Por mais que o “ato de contar histórias” não consista em nenhuma novidade, o seu uso estratégico segue ganhando destaque no mercado. A própria narrativa publicitária possui uma estrutura mítica, como demonstra Camargo (2011), constatação reforçada pelos estudos de Contrera (2002), que define conteúdos míticos como narrativas metafóricas que se caracterizam por uma similaridade estrutural e podem ser identificados em diversos discursos midiáticos. O potencial de influenciar pessoas por meio de imagens e narrativas míticas nos leva de volta à imagem de Gaia, ou da Grande Mãe, associada à natureza e, assim, ao discurso ambientalista, o que abre possibilidades para o estudo da presença de mitos e arquétipos na publicidade. 

Ao compreendermos o movimento ambientalista, que propõe a ecologia como visão de mundo, enquanto contestação dos valores que vigoram na sociedade ocidental, vemos que o storytelling configura-se como uma estratégia de comunicação com potencial para persuadir mais pessoas em prol de suas causas. As relações entre ambientalismo e novas tecnologias da comunicação são claras, de acordo com Castells (2018). Mas como o storytelling do Greenpeace faz uso estratégico dessas estruturas narrativas e referências míticas? E, considerando que os recursos de storytelling mais populares no mercado devem refletir uma perspectiva individualista, ocidental, podemos investigar como o Greenpeace questiona essa lógica, contando histórias em defesa da preservação da natureza. 

Apesar do Greenpeace ser uma das maiores organizações não-governamentais (ONGs) ambientalistas mundiais, ainda não foram realizadas pesquisas em âmbito nacional sobre as estratégias de storytelling adotadas por ela. No dia 10 de fevereiro de 2021, realizamos uma pesquisa exploratória no catálogo de Teses e Dissertações da Capes, escolhido por se tratar de um banco de dados suficientemente extenso e abrangente para um levantamento das pesquisas desenvolvidas no Brasil. A busca pelo termo “greenpeace” sem aplicação de filtros, nem mesmo limitando os trabalhos pelo período em que foram realizados, gerou 37 resultados, mas constatamos que apenas nove deles possuíam alguma relação com a área de comunicação, e que nenhuma pesquisa abordava o uso estratégico de storytelling. O que aponta possibilidades para investigações acerca do ato de contar histórias, em especial tendo como objeto as narrativas que visam gerar conexão entre humanidade e natureza. 

Para contextualizar a atuação do Greenpeace em âmbito nacional, destacamos algumas dessas pesquisas. Duas dissertações³ desenvolvidas sobre a ONG na área de comunicação constatam, levando em consideração tanto a veiculação de notícias em jornais de grande circulação, quanto comentários de leitores no meio virtual, que a organização faz uso de ações espetaculares para ter maior visibilidade, pautando os meios de comunicação, e que alcança bons resultados, gerando discutibilidade sobre os temas que coloca em evidência (SOUSA, 2010; PINTO, 2012). 

Em 2014, a tese “Pensar a cibercultura ambientalista: comunicação, mobilização e as estratégias discursivas do Greenpeace Brasil”, defendida por Katarini Giroldo Miguel na UMESP, constatava a existência de uma dinâmica comunicativa própria do movimento ambiental, caracterizada por estratégias de discurso e mobilização específicas. Foram entrevistados voluntários, seguidores e responsáveis pela comunicação do Greenpeace, com o objetivo de compreender suas motivações para se envolver na causa ambiental, e as conclusões da pesquisa apontam que o discurso da cibercultura ambientalista utiliza “o ethos do amigo, do parceiro, que oscila entre o drama e a agressividade para chamar atenção à causa” (MIGUEL, 2014, p. 7). Assim, o êxito das campanhas é garantido com uma dinâmica comunicativa lúdica, que beira o infantil, por fazer uso de linguagem coloquial, desenhos animados, jogos virtuais e música; ou seja, utilizando códigos da cultura contemporânea.

A pesquisa mais recente que encontramos foi a tese “ONGs transnacionais e os sentidos de sustentabilidade Amazônica: Imaginário, discurso e poder”, defendida na UFAM por Jonas da Silva Gomes Junior, que analisa os recursos midiáticos utilizados pelo Greenpeace e pelo WWF, no período de 2010 a 2016, para disseminar informações sobre a Amazônia e o seu desenvolvimento sustentável. Ao refletir sobre os processos de significação e as práticas discursivas das organizações do movimento ambientalista, o autor estabelece relações entre “o discurso da Sustentabilidade Amazônica, a construção de imaginários e a ‘espetacularização do verde’ no mundo globalizado” (GOMES JR, 2017, p. 7). Conclui-se que o discurso das organizações estudadas fetichiza a floresta, transformando-a em uma mercadoria-objeto, pois o sentido da sustentabilidade amazônica funde símbolos relacionados a preservação, doação, mercado e modismo, tendo como resultado uma espetacularização da Amazônia. 

Ao realizarmos novas buscas de caráter exploratório, limitando o intervalo de análise ao período que vai de 2010 a 2019, verificamos que a própria área de comunicação ainda carece de estudos mais aprofundados sobre storytelling. Apesar de muitos trabalhos já terem sido desenvolvidos sobre o tema na área de comunicação, percebemos que poucos abordam as raízes culturais dessa estratégia. Como Jeane Caroline de Oliveira Moreira Gois (2019) conclui na dissertação “Storytelling na comunicação organizacional”, defendida na PUC Minas Gerais, boa parte da bibliografia disponível sobre o assunto no Brasil é escrita por consultores, “que ensinam como fazer e têm uma visão reduzida e de encantamento sobre o assunto” (GOIS, 2019, p. 90).

Também há muitas pesquisas que abordam a sustentabilidade nas organizações, ou mesmo propostas educativas que fazem uso de recursos narrativos, mas poucos estudos tratam do imaginário produzido pela publicidade acerca das relações entre humanidade e natureza. Concordamos com o que Francisco dos Santos (2019) aponta em sua tese de doutorado, “O Paradoxo da Sustentabilidade Ambiental na Propaganda: trajetos de sentido e ciclos do imaginário”, defendida na UFRGS: a área de comunicação carece de estudos mais aprofundados quanto ao uso de mitos sobre as relações entre humanidade e natureza, pois dificilmente se associa “publicidade”, “propaganda” e “imaginário” ao tema “sustentabilidade”, ou mesmo “ecologia” (SANTOS, 2019, p. 23).

Cabe ainda destacar a tese de Priscila Medeiros (2017), “O Meio Ambiente na Narrativa Documental: uma análise das estratégias discursivas de documentários sobre a agricultura industrial”. Nela, a autora analisa documentários audiovisuais de ambientalistas e de empresas de insumos para a agricultura industrial, como produtoras de agrotóxicos, nos quais constata a presença de um discurso mítico, maniqueísta, que utiliza esquemas binários e oposições para vilanizar ou louvar a agricultura industrial. E o mais interessante, o discurso utilizado é muito semelhante entre os dois polos: ambientalistas e empresas industriais usam um mesmo discurso de apologia da natureza, vida e saúde, para condenar ou para vender insumos químicos em seus filmes. Medeiros (2017) explica que a moderna ideia de progresso tem suas raízes na cultura judaico-cristã, que reforça a dualidade homem/natureza, e rejeita as concepções cíclicas da história em nome de um tempo linear e progressista. Já o movimento ecológico contesta a ideologia do progresso, associada à ciência e à técnica, porque ela autoriza a exploração do meio ambiente pelo homem (MEDEIROS, 2017). Inclusive, foi após a revolução científica, entre os séculos XVI e XVII, que a ciência se institucionalizou, por meio do impulsionamento da ideia de método científico, e a natureza deixou de ser percebida de forma organicista, como uma "fêmea provedora viva", para ser tratada de forma mecanicista, como "algo morto e manipulável" (MEDEIROS, 2017, p. 22). 

Chama atenção o fato de associações simbólicas entre mulheres e natureza permanecerem fortes em nossa cultura, o que pode levar as organizações ambientalistas a fazerem uso desse recurso. Esse tema já estava presente no projeto inicial desta pesquisadora, originalmente submetido ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFPR, que visava estudar sentidos construídos sobre a natureza e arquétipos presentes em marcas de produtos femininos. Após uma graduação em Jornalismo, o interesse pela linha de pesquisa voltada para imaginário se devia principalmente a uma percepção pessoal sobre as transformações que ocorreram no mercado de trabalho de comunicação nos últimos anos: as áreas de Publicidade e Jornalismo pareciam se aproximar cada vez mais, em um contexto no qual o jornalismo precisa fazer uso de estratégias publicitárias para se manter rentável, e a publicidade, aplicar cada vez mais de estratégias jornalísticas para manter a credibilidade, a exemplo de práticas como o marketing de conteúdo. 

Entretanto, o que se tornou decisivo para o delineamento do projeto foram as mudanças acarretadas pela pandemia do coronavírus. Um desvio de rota, que teve início em março de 2020, desencadeou experiências que serviriam para a elaboração do problema, entre elas a oportunidade de trabalhar em uma ONG, no Vale do Rio Doce, cujos projetos focavam em reflorestamento e tecnologias sociais para o desenvolvimento de comunidades sustentáveis. Uma das necessidades apontadas pela administração era usar narrativas e estratégias para alcançar mais pessoas, sendo o storytelling constantemente citado como a “criação de uma narrativa”. A dificuldade de mobilizar a comunidade local e conseguir mais projetos aumentava a necessidade de investir em comunicação, porém, com recursos limitados, a equipe buscava uma solução “mágica” para esses problemas. 

Torna-se evidente como o mercado aposta na contação de histórias, que exerce um poder transformativo sobre as pessoas. Assim, surgiu a ideia de estudar as estratégias de storytelling usadas em filmes publicitários da maior ONG ambientalista a nível mundial, o Greenpeace. Diferentemente das pesquisas anteriores realizadas em âmbito nacional, localizadas em pesquisa exploratória já citada, nesta visamos focar nas estratégias do storytelling audiovisual da organização. E, considerando o recurso narrativo aos mitos, ganha importância o estudo deles por serem referências tão arraigadas na cultura que, provavelmente, não apenas influenciam os espectadores dos filmes publicitários, como também podem estar sendo reproduzidos pelas equipes de criação publicitária de forma inconsciente.

Também nos interessa explorar como as estruturas narrativas do cinema são transpostas para os filmes publicitários, que visam influenciar comportamentos, explorando tantos recursos audiovisuais quanto podem para emocionar, captar atenção e despertar memórias (CAMARGO, 2011). O storytelling se configura como uma das estratégias utilizadas, como constata a dissertação “Publicidade audiovisual e a intertextualidade com o cinema: Um estudo de recepção publicitária”, que busca compreender a recepção de elementos cinematográficos pelo público de filmes publicitários. Araújo (2018) reconhece que a publicidade atual não visa apenas persuadir, mas também interagir com o público, fornecendo elementos para entreter e gerar o compartilhamento de suas mensagens. Por isso, anúncios audiovisuais têm feito uso de narrativas próprias do cinema, adotando elementos presentes em filmes, a exemplo de diálogos, fotografia, direção de arte e estilo, a fim de atrair o público consumidor. 

Por se tratar de uma demanda tão atual, a presente pesquisa tem como tema o uso do storytelling em filmes publicitários do Greenpeace, buscando contribuir com os estudos sobre quaternidade mítica (CAMARGO; OLIVEIRA, 2020) e acerca do imaginário em torno dos conceitos de natureza e cultura. A fim de também enriquecer os estudos de Camargo (2011) sobre o gênero filme publicitário, escolhemos como objeto essa narrativa audiovisual que, apesar de ter se originado na televisão, segue popular especialmente por meio das redes sociais. Para tal, serão analisados três vídeos, disponíveis no canal do YouTube do Greenpeace Brasil, que utilizam recursos do storytelling para produzir sentidos, estratégica e persuasivamente, em defesa da proteção ambiental. 

É necessário fazer algumas observações a respeito da possível audiência dos vídeos, disponíveis desde 2020 pela plataforma YouTube, no canal do Greenpeace Brasil. De acordo com o último relatório “Síntese de indicadores sociais” do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, cerca de 83,8% da população brasileira tinha acesso domiciliar à internet em 2019 (IBGE, 2020). Ao longo de 2020, ano marcado pela pandemia global do coronavírus, uma pesquisa desenvolvida pela Kantar IBOPE Media (2021) apontava um aumento no tempo médio de consumo de vídeos online, independentemente da plataforma: em 2020, vídeos online foram consumidos em 61% dos domicílios brasileiros, enquanto em 2018 eram apenas 33%, o que revela um aumento de 84% em apenas três anos. O celular se destaca como aparelho mais usado para acessar a internet, sendo opção de 87% das pessoas que assistem vídeos online (KANTAR, 2021). No levantamento Video Viewers, realizado pelo Google em 2018, em parceria com o Instituto Provokers e com a Box 1824, o YouTube já constava como 2º maior destino para o consumo de vídeos no Brasil, atrás somente da TV Globo, superando os demais canais de TV aberta somados em número de vídeos assistidos (THINK WITH GOOGLE, 2018).

Em suma, o Greenpeace investe em estratégias de comunicação para persuadir pessoas em prol da preservação do meio ambiente, e entre os conteúdos produzidos pela organização estão filmes publicitários que fazem uso do storytelling, disponíveis no canal do YouTube Greenpeace Brasil. E o que o movimento ambientalista defende é uma perspectiva holística, que se beneficia do uso de mitos, simbologias e arquétipos, visando criar uma nova identidade, ou uma nova cultura, da espécie humana como componente da natureza (CASTELLS, 2018). No entanto, quando falamos de storytelling, a estrutura narrativa mais popular no mercado é a Jornada do Herói, que reflete uma visão individualista, ocidental (CAMPBELL, 2015), de base judaico-cristã. Assim surge a questão: como o Greenpeace utiliza estratégias do storytelling, tais como estruturas narrativas e referências míticas, para envolver pessoas na causa ambientalista? 

A fim de responder essa pergunta, partimos da premissa de que o arquétipo da Grande Mãe é usado estrategicamente nos filmes publicitários do Greenpeace, dentro de uma estrutura narrativa persuasiva, para envolver a audiência na luta pela preservação do meio ambiente. O objetivo geral é compreender como o uso estratégico do storytelling, na forma de estruturas narrativas e referências arquétipo-míticas, constrói sentidos sobre a relação entre humanidade e natureza em filmes publicitários do Greenpeace para persuadir pessoas em prol da causa ambientalista.

Assim, estabelecemos como objetivos específicos: 

  • ­Investigar como os filmes publicitários, enquanto textos culturais, estabelecem relações com os textos míticos, a partir da Semiótica da Cultura.
  • ­Contextualizar como o storytelling se popularizou no mercado, destacando a origem do estudo de narrativas no ocidente e seus usos na publicidade e no cinema comercial.
  • ­Analisar estruturalmente, por meio de métodos qualitativos, três filmes publicitários do Greenpeace selecionados.

No primeiro capítulo, “Sobre mitos, simbologias e arquétipos”, partimos da perspectiva da Semiótica da Cultura para investigar como diferentes textos culturais se entrelaçam nos filmes publicitários do Greenpeace. Além de ser um campo de estudos interdisciplinar, consideramos o aporte teórico adequado para a pesquisa por sua abordagem sistêmica das relações entre natureza e cultura. Recorremos a Ivan Bystrina (1995) e Irene Machado (2003), além das pesquisas de Malena Contrera (1996, 2002) e Hertz Wendel de Camargo (2011) sobre a presença dos mitos na cultura de massas, para integrar ao tema contribuições dos campos da Antropologia e da Psicologia Profunda. Destacamos os estudos de Erich Neumann (2021) acerca do arquétipo da Grande Mãe e de Mircea Eliade (1972) sobre os mitos do Fim do Mundo, que dialogam diretamente com o corpus a ser analisado, antes de explorarmos a Jornada do Herói, elaborada Joseph Campbell (2013) a partir do trabalho de Carl Gustav Jung (2008).

A fim de possibilitar um olhar sobre as raízes culturais do storytelling, nossa fundamentação teórica abrange as contribuições do Estruturalismo (LÉVI-STRAUSS, 2008) para os estudos literários e sua relação com o campo da Semiótica (EAGLETON, 2003; BONNICI, 2009). Mais adiante, o Formalismo Russo também será abordado, com destaque para Vladimir Propp (2006) que, ao analisar contos através das funções que os personagens realizam, lança as bases para o desenvolvimento da Narratologia. Esses estudos influenciaram a prática do storytelling enquanto tecnologia de comunicação, extensivamente usada até hoje nos mais diversos produtos midiáticos, a exemplo do manual de escrita “A jornada do Escritor”, escrito por Christopher Vogler (2015). 

Para contextualizar a popularização do storytelling com foco nos filmes publicitários, o segundo capítulo, “Além da Jornada do Herói…”, é dedicado à definição do termo, a partir de Palacios e Terenzzo (2016), e à exposição de estudos relacionados, provenientes das áreas de Literatura, Cinema e Publicidade. A fim de posicionar o storytelling como ferramenta estratégica de comunicação, tomamos como referência autores como Donald Miller (2019) e Christopher Salmon (2010), que apresentam diferentes perspectivas em relação ao uso mercadológico das narrativas. Também abordamos os primeiros escritos sobre estruturas narrativas no Ocidente (ARISTÓTELES, 2004) e a emergência de um Paradigma Narrativo na área de Comunicação (FISHER, 1987), para compor um panorama geral sobre o tema, além dos estudos de Kristin Thompson (1999) sobre a narrativa clássica do cinema, considerando que o filme publicitário se caracteriza enquanto gênero situado entre o cinema e a publicidade. 

No terceiro capítulo explicamos o método adotado para estudar as estruturas narrativas presentes nos filmes publicitários do Greenpeace, que consiste no uso de técnicas de análise de conteúdo (BARDIN, 2016) associadas à aplicação da estrutura narrativa da quaternidade mítica, desenvolvida por Massimo Canevacci (1984) a partir dos estudos junguianos. Como o problema de pesquisa surge do questionamento de como uma estrutura narrativa de bases judaico-cristãs poderia ser aplicada ao movimento ambientalista, com sua ênfase holística e sistêmica, tomamos como referencial metodológico os trabalhos já desenvolvidos por Camargo (2011), que aplica o esquema da quaternidade mítica a filmes publicitários. Vale ressaltar que, por esse esquema tomar como base os estudos de Carl Jung, ele também serve para analisar a estrutura narrativa da Jornada do Herói (CAMPBELL, 2013; VOGLER, 2015). 

No mesmo capítulo, dedicado ao método e técnicas empregados para a análise, adaptamos a estrutura da quaternidade mítica, substituindo seus elementos patriarcais por elementos matriarcais, a partir dos estudos de Erich Neumann (2021) sobre o arquétipo primordial da Grande Mãe, a fim de verificar a premissa que elaboramos após uma pré-análise do corpus. Os critérios estabelecidos para selecionar os filmes publicitários que o compõem foram: utilizar o storytelling para engajar pessoas em torno da causa ambiental, estar disponível no YouTube e ser de fácil acesso para o público brasileiro. Optamos pelo YouTube como plataforma de pesquisa devido ao seu amplo alcance: em 2020, o YouTube já contava com pelo menos 105 milhões de usuários entre 18 e 65 anos ativos mensalmente, apenas no Brasil (CAPELAS, 2022). 

Definimos o corpus a partir dos mais de 800 vídeos enviados pelo canal Greenpeace Brasil, disponíveis no YouTube em maio de 2021. A amostragem foi restringida aos envios mais recentes, datados de 2020, e selecionamos os que se caracterizam pelo recurso a técnicas de storytelling. Assim chegamos aos vídeos que compõem o corpus de pesquisa: “Tem um monstro na cozinha”, “Jornada das tartarugas" e “Eu sou a Amazônia”. Os três filmes publicitários fazem uso do storytelling com uma perspectiva global, e representam elementos ligados às florestas e aos oceanos por meio de referências mitológicas e da antropomorfização de elementos não-humanos.

Estudando o material a ser analisado, verificamos que, a partir dos elementos não-humanos, os filmes publicitários se referem a determinados mitos e arquétipos para se conectar com a audiência, como os arquétipos da anima, velho sábio e sombra (JUNG, 2008) e da Grande Mãe (NEUMANN, 2021), tanto em seu caráter elementar, como um Grande Círculo ao qual tudo pertence, quanto em seu caráter de transformação, que possibilita a transmutação da personalidade humana. Em nossa premissa, supomos que os vídeos fazem uso dessas referências arquétipo-míticas dentro de uma estrutura narrativa quaternária para criar conexão com o público, sensibilizando-o a favor das causas defendidas pelo Greenpeace a fim de engajar mais pessoas em prol da preservação ambiental. 

No capítulo dedicado à análise de conteúdo dos três filmes publicitários, começamos pelo vídeo "Eu sou a Amazônia", que se destaca por fazer uso de imagens da floresta, linguagem poética e narração em primeira pessoa, como se a natureza se dirigisse diretamente ao espectador. É a única produção do Greenpeace Brasil, enquanto os outros vídeos são animações produzidas por estúdios internacionais premiados, traduzidas para o português. Depois analisamos "Jornada das Tartarugas", que faz uso de técnicas de stop motion para contar a história fictícia de uma família de tartarugas, reproduzindo o formato de um documentário conduzido pelo relato do pai-tartaruga, com um tom mais dramático. O último vídeo, "Tem um monstro na minha cozinha", é uma animação que faz uso de linguagem poética e apresenta um enredo mais dinâmico, com mudanças de perspectiva, iniciando-se com um clima de suspense. Ao final, realizamos uma síntese analítica com o levantamento dos padrões encontrados nos três vídeos.

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¹ James Lovelock começou a desenvolver sua Hipótese de resposta da Terra (Earth reaction hypothesis) durante a década de 1960, contando com o apoio de Lynn Margulis, quando trabalhava para a NASA. O nome de Hipótese de Gaia foi sugerido na ocasião de sua publicação, em 1972, pelo escritor William Golding, para homenagear a deusa grega que personifica a Terra e cujo prefixo (geo, ou gea) é usado em palavras como geologia. A hipótese passou a se chamar Teoria de Gaia após décadas de discussões, descobertas e correções.

² Documento publicado pelo International Geosphere-Biosphere Programme (IGBP), ou Programa Internacional da Geosfera, uma rede de cientistas formada em 1987 com o objetivo de desenvolver pesquisas interdisciplinares sobre as mudanças globais e o sistema terrestre.

³ “Greenpeace, espetáculo e internet: o intercruzamento entre diferentes modos de comunicação para sustentação de debates na esfera pública”, defendida em 2010 por Diógenes Lycarião Barreto de Sousa, na UFMG, e “As estratégias ativistas do Greenpeace para suscitar o debate sobre o meio ambiente na esfera pública”, defendida em 2012 por Rafaela Caetano Pinto, na UFSM.

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