"A vida faz mais do que se adaptar à Terra; ela a modifica. A evolução é uma dança bem engendrada na qual a vida e o ambiente material formam um par. Dessa dança emerge a entidade Gaia." (James Lovelock)
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O protótipo hipo-estrutural da quaternidade mítica

Os filmes publicitários foram analisados dentro do esquema quaternário desenhado por Massimo Canevacci no livro “Antropologia do Cinema” (CANEVACCI, 1984), em que ele explora os estudos de Carl Jung sobre a Santíssima Trindade, que reflete as bases da sociedade cristã ocidental, para analisar a estrutura de narrativas cinematográficas. É necessário esclarecer que a perspectiva de Canevacci (1984) se distancia da abordagem junguiana, que o autor critica, referindo-se aos arquétipos como imagens inconscientes não arquetípicas e argumentando que elas são estruturadas historicamente, e não universais (CANEVACCI, 1984).

Por mais que Canevacci (1984) discorde da visão arquetípica de Jung, ele considera importante analisar os problemas simbólicos relacionados a mito, rito e dogma enraizados na hipo-estrutura, que podem levar a efeitos perigosos se escaparem dela. A hipo-estrutura é definida pelo autor como:

patrimônio biopsíquico que não se esgota na dimensão econômica ou cultural, mas compreende em si também a dimensão de natureza, segundo um enfoque metodológico pelo qual ela só é o que é na medida em que é mediatizada por uma relação consciente ou inconsciente com o Homo sapiens (CANEVACCI, 1984, p. 18)

Um hábito hipo-estrutural presente desde os primórdios da humanidade, de acordo com o autor, é o ato de repetir várias vezes a mesma história, recorrendo-se a ela constantemente para se assegurar da ordem das coisas, como acontece com os mitos. Canevacci (1984) realiza uma crítica ao etnocentrismo do cinema a partir do esquema junguiano, considerando que a reprodução da quaternidade nos filmes comerciais se configura como um ritual, de forma semelhante aos mitos arcaicos. A quaternidade original é apresentada como:

Assim, considerando que o cinema, ou a representação fílmica, é produzida em torno da civilização patriarcal cristã-burguesa, Canevacci (1984) aborda Jung para investigar os elementos hipo-estruturais que compõem o filme comercial. Ao reduzir os arquétipos a protótipos, o autor os define como visões que, por meio do cinema, “estabelecem uma gigantesca ponte entre a alienação vivida nessa vida e a angústia existencial de séculos de civilização alienada” (CANEVACCI, 1984, p. 36). O que não diminui o fato de que a Jornada do Herói, examinada no primeiro capítulo, corresponde a esse esquema porque reproduz o “drama cosmológico divino – nascimento, afirmação e morte do herói, depois o sacrifício da ressurreição até a vitória do bem” (CANEVACCI, 1984, p. 47).

De acordo com o esquema junguiano adaptado por Canevacci (1984), Pater corresponde à origem de todas as coisas. Filius é o herói, que encontra suas origens no Pater e deve superar provas para conquistar seu objetivo. Contemporâneo ao Filius, e também o seu oposto, está o Diabolus, que assume a figura de “anti-herói, zona indistinta e incontrolada” (CANEVACCI, 1984, p. 56). Já o Spiritus nega a negação, aliando-se aos Filius para derrotar o inimigo comum, mas acaba sendo conduzido a este por possuir um caráter irracional e irrefletido.

Apesar dos protótipos não constituírem padrões universais, o autor afirma que ainda assim eles mantêm relação com a realidade, servindo como uma chave de interpretação distorcida. Por isso utilizaremos esta chave, previamente aplicada por Camargo (2011) em pesquisas sobre as simbólicas e os valores reproduzidos por produções audiovisuais, para analisar nosso corpus composto por filmes publicitários. A fim de interpretar os valores morais contidos na estrutura quaternária, é útil visualizarmos o original junguiano adaptado a um esquema mais “laico” (CANEVACCI, 1984, p. 68):

Este esquema moral, que reflete um conflito entre o Bem e o Mal, passa do pensamento simbólico-religioso para o cinema preservando seu teor maniqueísta. Segundo Canevacci (1984), por mais que seja possível modificar a narrativa combinando outros elementos já preestabelecidos e universalmente conhecidos, a estrutura quaternária geralmente permanece a mesma, reforçando o estereótipo de um sistema de oposições (CANEVACCI, 1984).

A ligação existente entre essa lógica maniqueísta e os valores judaico-cristãos da sociedade ocidental se evidencia no dogma da Santíssima Trindade. A partir do momento em que o “um”, indefinível, torna-se dual, cria-se um binário, e dentro dessa oposição o Diabolus se configura como adversário do Filius, que seria Cristo. O Filius, que é o filho e o logos, se contrapõe ao Diabolus que, por ser autônomo, não pode ser instrumento divino nem sujeito à soberania de Deus. Ocultar o Diabolus deu origem à Trindade cristã, que o “demoniza”, e com efeito “toda a cultura de massa – positiva, metafísica, materialista – continua a ter por objeto a demonização do outro e a beatificação do próprio si mesmo e do próprio grupo” (CANEVACCI, 1984, p. 55).

Partindo da perspectiva do autor, a estrutura da cruz quaternária é um esquema conservador na medida em que reflete as simbólicas de uma concepção de mundo patriarcal cristã-burguesa, reforçada pelo etnocentrismo do cinema. Para romper com os estereótipos, seria necessário questionar sua lógica fundada em oposições. O que nos leva de volta ao conceito de arquétipo primordial, desenvolvido por Neumann (2021), que reúne em si valores opostos, caracterizando-se, assim como o inconsciente, de forma ambivalente.

O arquétipo primordial corresponde à Grande Mãe, representação de uma divindade como unidade, contendo em si tudo o que a consciência ainda não foi capaz de dividir em antíteses. Por isso Neumann (2021) afirma que, antes da humanidade formar uma figura da Grande Mãe, surge uma ampla variedade de símbolos 

que se referem à sua imagem ainda não determinada e amorfa. Tais símbolos, especialmente os da natureza em todos os seus reinos, estão, de certa forma, marcados pela imagem do Grande Maternal, que vive neles e lhes é idêntica, sejam eles uma pedra, uma árvore, um lago, uma fruta ou um animal. Aos poucos eles se unem à figura da Grande Mãe como atributos e criam o círculo de aspectos simbólicos que cinge a figura arquetípica e se manifesta no mito e no rito (NEUMANN, 2021, p. 26).

Essas associações da Grande Mãe à natureza, ao mundo e à totalidade permitem que, na análise dos filmes publicitários do Greenpeace, o esquema de Canevacci (1984) seja adaptado para verificar se a estrutura quaternária original é reproduzida ou se a sua lógica é contestada. O questionamento dessa lógica seria um objetivo do storytelling ambientalista por possibilitar a integração entre a “humanidade” (representada pela audiência, no papel de herói, mas também pelos responsáveis pela destruição ambiental) e a natureza (na forma da Grande Mãe ou do narrador personagem, que são seres não-humanos antropomorfizados). Assim adaptamos o esquema:

De forma semelhante ao Pater, o simbolismo da Grande Mãe, que aqui denominamos Mater, também representa um Ente Supremo, cujo significado se aproxima ao das imagens arquetípicas do velho sábio ou do self. Pertencem à categoria Mater todas as imagens de harmonia entre humanidade e natureza, além de ideias relacionadas a mitos de criação, origem ou verdade, em particular na forma de códigos de conduta. Já o narrador-personagem, equivalente ao Spiritus, corresponde aos personagens antropomorfizados que se dirigem ao herói durante a narrativa, exercendo diferentes funções, principalmente com o objetivo de envolver a audiência despertando emoções. O herói, representado pelo Filius, é a própria audiência, uma vez que depende dela a ação mais importante da narrativa, que é o próprio objetivo dos filmes publicitários do Greenpeace: agir em prol da causa ambientalista. Por fim, o Diabolus corresponde às imagens de destruição ambiental, que incluem máquinas, poluição, queimadas e mortes, assim como todos os aspectos “sombrios” da interferência humana na natureza.

A adaptação do esquema exige mais uma alteração no sentido do Spiritus para se adequar à imagem arquetípica da Mater, de acordo com a descrição de Erich Neumann (2021). O autor explica, de forma simplificada, que há uma correlação do sol com a consciência patriarcal e da lua com a consciência matriarcal. Diferente da consciência patriarcal, que se eleva como um espírito puro, invisível e imaterial, o aspecto espiritual-lunar do matriarcado não se desliga da materialidade porque a própria feminilidade também não pode fazê-lo. 

A vivência que o matriarcado tem de si pode, como consideramos anteriormente, ser condensada na equação mulher = corpo = vaso = mundo. O fenômeno do mistério da transformação, quando surge o ‘espírito’, é também produto desse Grande Círculo, como sua essência luminosa, seu fruto e seu filho. O espiritual não aparece aqui como a concepção apolínea-solar-patriarcal do ‘ser-em-si’, como existência pura e perpétua, mas permanece ‘filial’, apreendendo-se como criatura surgida historicamente que não omite sua ligação com a terra e a mãe. (NEUMANN, 2021, p. 69)

Neumann (2021) explica que o espírito abstrato do patriarcado é expresso no mito judaico-cristão da criação por meio da palavra (“no princípio era o verbo”), ignorando que a própria palavra só é possível de ser articulada por meio do corpo, afinal, “a palavra ‘nasce’ como essência da totalidade corporal divina, o Grande Círculo” (NEUMANN, 2021, p. 74). Desse modo, o aspecto matriarcal do espírito, que encontra representação na lua, é depreciado pelo aspecto patriarcal e solar porque se preserva anímico, ainda que consista na forma mais elevada de evolução material e telúrica (NEUMANN, 2021). Esta é a representação do Spiritus que analisaremos nos filmes publicitários do Greenpeace. 

Método e técnicas

A fim de analisar como estratégias de storytelling são usadas em uma amostra de filmes publicitários do Greenpeace, aplicamos ao corpus técnicas de análise de conteúdo (BARDIN, 2016) associadas a uma adaptação do esquema quaternário elaborado por Massimo Canevacci (1984) a partir dos estudos de Carl Jung. Para isso, elaboramos uma questão-chave: como o Greenpeace convoca a audiência a agir em prol da causa ambientalista? 

O Greenpeace foi escolhido por ser uma das maiores organizações ambientalistas a nível mundial e por produzir conteúdo audiovisual. Por meio de buscas por conteúdo de ONGs ambientalistas no YouTube, confirmamos que o Greenpeace possui um volume significativo de vídeos publicados na plataforma que fazem uso de narrativas lúdicas e animações. Realizamos uma “leitura flutuante” dos vídeos publicados pelo canal Greenpeace Brasil, e constatamos que, além de reportagens, documentários, entrevistas, podcasts, entre outros materiais diversos, os resultados também incluíam filmes publicitários que fazem uso de recursos do storytelling

Ainda no início da pesquisa, em maio de 2021, verificamos que entre os mais de 800 vídeos enviados pelo canal Greenpeace Brasil disponíveis no YouTube, cerca de 298 foram publicados entre os anos 2017 e 2020 (YOUTUBE, 2021). Desse período, foram selecionados apenas os materiais que não possuíam caráter documental, nem focavam no uso de dados e infográficos, nem se tratava de entrevistas e debates. Esta pré-seleção reduziu a amostra a nove vídeos, característicos pelo uso de animações, poesias e/ou narrações em off para transmitir as mensagens visadas pela organização. No entanto, dois vídeos publicados em 2018 (“Rang-tan: a história do óleo de palma sujo” e “Para nossos oceanos”) possuíam formatos semelhantes a vídeos mais recentes, publicados em 2020, o que nos leva a crer que houve a repetição de uma fórmula bem-sucedida por parte das equipes de criação. 

Assim, decidimos reduzir a amostragem, optando por restringir a pesquisa aos vídeos publicados em 2020, que no total somavam 85. Selecionamos aqueles que possuíam o formato mais lúdico, com uso de animações ou uma abordagem mais poética, que totalizaram 7, mas apenas quatro destes se caracterizavam pelo recurso a técnicas de storytelling, sendo um repetido por se tratar de uma versão dublada do outro. Ao final, chegamos à seleção dos três vídeos que compõem nosso corpus de pesquisa: “Tem um monstro na minha cozinha”, “Jornada das tartarugas” e “Eu sou a Amazônia”.

Com o objetivo de destacar a estrutura narrativa dos filmes publicitários, aplicamos técnicas da análise de conteúdo (BARDIN, 2016), um instrumento pertinente para analisarmos as produções audiovisuais tanto a nível visual quanto sonoro. Porém, como nos textos publicitários se destacam “a palavra persuasiva e a estrutura narrativa” (BARDIN, 2016, p. 273), para compreender a lógica do corpus também se faz necessário apreender os valores implícitos aos quais o código da publicidade recorre.

Para analisar a presença do arquétipo da Grande Mãe nos filmes publicitários do Greenpeace, realizamos as inferências aplicando o conceito de “espírito” do cinema, com um esquema estrutural quaternário proposto por Massimo Canevacci (1984) a partir dos estudos de Carl Jung, adaptando-o para abranger os conceitos desenvolvidos por Erich Neumann (2021). Desse modo elaboramos um método que envolve técnicas de análise sequencial e temática, para organizar as sequências narrativas em categorias que correspondem aos elementos do esquema quaternário, sem deixar de enfatizar sua estrutura. Como explica Laurence Bardin (2016):

Na análise com caráter 'estrutural' não se trabalha mais (ou jamais só) na base da classificação dos signos ou das significações, mas debruçamo-nos sobre o arranjo dos diferentes itens, tentando descobrir as constantes significativas nas suas relações (aparentes ou latentes) que organizam esses itens entre si (BARDIN, 2016, p. 267).

Para auxiliar na interpretação dos dados, também identificamos os pontos de virada da narrativa de acordo com a divisão em quatro segmentos de Thompson (1999): apresentação, ação complicadora, desenvolvimento e clímax. Assim, a análise também permite examinarmos se a mesma forma presente no cinema comercial é reproduzida nos filmes publicitários selecionados, que, apesar de possuírem duração reduzida, são influenciados pela linguagem cinematográfica. 

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Call To Action: A audiência como protagonista

 […] os princípios e técnicas de storytelling, que até pouco tempo atrás pertenciam ao reino da literatura, cinema, teatro e contação de histórias no jardim da infância, saltaram para dentro das empresas e de uma vez por todas para a política dos oito países que, combinados, formam mais de 50% da política mundial (MCSILL, 2015, p. 32)

Ao longo do capítulo contextualizamos o uso instrumental da narrativa, destacando suas origens, abordando a função das histórias na tomada de decisões, passando pelos estudos de Narratologia e de comunicação organizacional, e destacando principalmente a popularização do storytelling na publicidade, assim como a constância de uma estrutura narrativa no cinema comercial. Voltando ao storytelling publicitário, resta explorarmos de que forma ele pode servir como estratégia de comunicação em uma organização da sociedade civil.

Em “Cultura do Consumo”, Isleide Arruda Fontenelle (2017) cita uma forma de prossumo relacionada à comunicação de ONGs: a prosuming conservation. A autora cita uma pesquisa etnográfica, realizada em duas ONGs de preservação da natureza, que demonstrou como elas atuam de forma semelhante a empresas capitalistas. Os prossumidores, neste caso, constroem a imagem e a experiência da natureza que eles pretendem conservar:

A análise dos websites dessas ONGs mostrou como os prossumidores são interpelados a não apenas contribuir com recursos financeiros, mas também a compartilhar, com amigos e familiares, o conteúdo criado em seus próprios sites pessoais, em conexão com os sites dessas ONGs. O conteúdo dos sites analisados sugere que isso permite que o prossumidor faça a diferença no projeto de salvar os animais africanos. (FONTENELLE, 2017, p. 139)

Vale lembrar que o movimento ambientalista, de acordo com Castells (2018), é bem sucedido em mobilizar pessoas porque, além de utilizar as tecnologias de comunicação a seu favor, caracteriza-se por seu pragmatismo. Dessa forma, ao dar ênfase à resolução de questões, "as pessoas percebem que são capazes de exercer influência sobre decisões importantes aqui e agora" (CASTELLS, 2018, p. 243).

Também já observamos na introdução desta pesquisa que o Greenpeace mantém em seu site a página Greenpeace Storytelling, dedicada a divulgar formas de usar o storytelling como estratégia, em especial para iniciativas que visam a conscientização ambiental (GREENPEACE, 2021). Mas, além deste projeto, constatamos que seu investimento na produção de narrativas audiovisuais reflete uma tendência do mercado. Como exemplo podemos citar as semelhanças dos filmes publicitários do Greenpeace com o método storybrand, entre elas o fato de ambos se referirem à audiência como protagonista, terminando seus filmes no que seria o clímax, com uma Call To Action.

Muitos consumidores já estão acostumados com frases como “Se você gostou do conteúdo, curta, comente e compartilhe”, que no marketing recebem o nome de Call to Action (CTA), ou chamada à ação. Apresentadas em conteúdos online que visam engajar usuários e expandir o alcance das marcas que a utilizam, essas chamadas têm o objetivo de persuadir, de forma simples e direta, a audiência a agir de determinada forma logo após a entrega de informações de valor ou uma mensagem impactante. 

Diferentes chamadas servem a diferentes objetivos, desde vender produtos até conquistar apoiadores em uma campanha de preservação ambiental. Porém, todas são posicionadas estrategicamente dentro do storytelling publicitário para alcançar o público-alvo, como Miller (2019) evidencia: 

Definimos um desejo, identificamos seus desafios, fomos empáticos em relação a seus sentimentos, estabelecemos nossa competência para ajudá-los e lhes demos um plano. Mas eles precisam que façamos mais uma coisa: que os exortemos a agir (MILLER, 2019, p. 95). 

Ao tratarmos dos vídeos publicados pelo Greenpeace Brasil, é primordial identificarmos a CTA de cada um deles para definirmos o objetivo das suas campanhas. Na forma de filmes publicitários, as histórias – contadas de modo a captar a atenção da audiência, despertar memórias e mitos presentes no imaginário e, enfim, causar emoção para engajar mais pessoas em prol da causa ambiental –, caracterizam-se pelo seu poder de persuasão. E mesmo quando a “ação” visada não é colocada de forma direta, os vídeos terminam com frases que a sugerem, implicitamente:

    • ­“Eu sou a Amazônia” (2020): “A Amazônia depende de nós, nós dependemos da Amazônia. #TodosPelaAmazônia.”;
    • ­“Jornada das Tartarugas” (2020): “6 em cada 7 espécies de tartarugas-marinhas estão ameaçadas de extinção. Precisamos de santuários marinhos em um terço dos oceanos para que as tartarugas e outras espécies fiquem a salvo. (...) Proteja os oceanos. Assine a petição. greenpeace.org.br/proteja-os-oceanos”;
    • ­“Tem um monstro na minha cozinha” (2020): “O desmatamento é um monstro que está devorando nossas florestas e nossa biodiversidade. Exija que as empresas e governos protejam a Amazônia e o nosso futuro. Compartilhe e ajude a proteger nossas florestas.”.
Durante a pré-análise, verificamos que todos os vídeos concluem suas narrativas com afirmações ou dados sobre a importância de preservar o meio ambiente. Desse modo, entregam um valor genuíno, do qual se espera convencer a audiência a partir de um storytelling que provoca sensibilização, conexão com a natureza, ou até identificação com os personagens que o narram. A CTA convoca a adesão da audiência à causa, seja por meio do uso de hashtags, assinatura de uma petição ou compartilhamento do conteúdo.

Duas características marcantes do herói, segundo Vogler (2015), são a ação e a disposição ao sacrifício. E o autor explica que o público costuma se identificar naturalmente com o herói, porque é através de sua perspectiva que se sente imerso na narrativa. De acordo com “A jornada do escritor” (2015), ao longo da história o protagonista tem como principal função aprender, enquanto vence obstáculos e alcança objetivos. Ao chegar no clímax do roteiro, depois de adquirir conhecimentos por meio da experiência e manifestar suas vontades e seus desejos, cabe ao herói realizar uma ação decisiva, de maior risco ou responsabilidade, da qual depende o destino dos outros personagens.

Por isso partimos da premissa de que a audiência constitui o herói dos filmes publicitários do Greenpeace. E as pessoas que compõem essa audiência, por consumirem os vídeos por meio do YouTube, também se tornam prossumidores, como explica Fontenelle (2017):

É no contexto das redes e mídias sociais que, de fato, encontramos a relação mais elaborada do prossumo como cocriação da experiência. Todo o conteúdo que viabiliza a existência desses espaços virtuais é feito por um agente que pode ser considerado um prossumidor, na medida em que tais espaços não existiriam sem o trabalho e o consumo ininterrupto daqueles que o acessam. (FONTENELLE, 2017, p. 139-140)

A partir dos três filmes publicitários que constituem o corpus da pesquisa, analisaremos como eles produzem sentidos sobre a relação entre humanidade e natureza. Para isto, adaptamos um esquema de interpretação desenvolvido por Massimo Canevacci (1984) a partir dos estudos da Psicologia Analítica, o que proporcionará um enfoque estrutural para a aplicação da análise de conteúdo (BARDIN, 2016). 

O cinema comercial revela sua forma

Os filmes publicitários que fazem uso de recursos do storytelling se beneficiam das estratégias usadas em filmes comerciais, uma vez que o gênero está situado entre o cinema e a publicidade. Tratando-se de Hollywood, Kristin Thompson (1999) afirma, em “Storytelling in the New Hollywood: Understanding Classical Narrative Technique”, que a ideia de que os roteiros deveriam ser divididos em início, meio e fim, conforme concebia Aristóteles, já estava presente em manuais desde antes da I Guerra Mundial. Entretanto, após uma análise empírica das narrativas clássicas hollywoodianas ao longo do século XX, a autora percebeu que a estrutura delas, em vez de corresponder aos três atos, consiste em quatro segmentos, que têm como foco as ações e motivações dos personagens.

Uma das possíveis explicações para o fato de a noção aristotélica, proveniente do teatro, não se adequar ao cinema, é que a experiência de assistir a um filme não envolve “intervalos”: o objetivo dos filmes comerciais é prender a atenção dos espectadores até o fim da sessão de cinema (THOMPSON, 1999). Os filmes de Hollywood são construídos de modo a envolver o público na narrativa, assim como o objetivo dos filmes publicitários é manter sua audiência atenta até o final, momento em que a persuade para executar uma ação.

Thompson explica que a estrutura das narrativas hollywoodianas possibilitou a adequação dos filmes à reação da audiência, algo que já interessava aos produtores desde a década de 1920. O uso frequente dessas técnicas pode ter levado os cineastas de Hollywood a desenvolverem uma “habilidade instintiva” de identificar o momento certo para mudar a direção da ação (THOMPSON, 1999, p. 43). De forma semelhante às ações ascendentes e descendentes (rising and falling actions) presentes na estrutura de obras literárias, a dinâmica própria do cinema comercial é o que define os segmentos das suas narrativas:

Por que uma narrativa precisa deste tipo de estrutura? Podemos supor que dividir uma narrativa em partes dá ao espectador um senso da direção pela qual a ação vai seguir, de maneira a auxiliar sua compreensão. A estrutura pode ser aprendida instintivamente, se assistirmos a muitos filmes. Ela também previne que alguma porção da história se torne muito longa e entedie a audiência (THOMPSON, 1999, p. 22, tradução da autora) 

Assim, Thompson (1999) afirma que desde os primórdios de Hollywood, vários cineastas parecem ter, deliberada ou instintivamente, ajustado suas narrativas em segmentos de larga escala, com duração mais ou menos equilibrada, seguindo um padrão que pode ser dividido em quatro partes: apresentação ou exposição (setup), ação complicadora (complicating action), desenvolvimento (development), e clímax ou resolução (climax). 

Como exemplo, é interessante notar que, antes mesmo da pesquisa de Thompson (1999) ser publicada, a adaptação da Jornada do Herói que Christopher Vogler propôs para o cinema já transformava os três atos elaborados por Campbell em quatro atos. Como vimos no primeiro capítulo, Vogler (2015) incluiu quatro clímaces no esquema de Campbell (2013), o que acabou por destacar o estágio da Provação na metade do segundo ato, resultando no esquema: ato 1: Separação; ato 2A: Descida; ato 2B: Iniciação; e ato 3: Retorno (VOGLER, 2015, p. 46). 

Por outro lado, algumas constatações de Thompson (1999) reforçam o legado aristotélico. Uma delas é a importância dada a uma boa construção dos personagens, que para Aristóteles é um dos elementos mais importantes da tragédia, ficando atrás somente do enredo. De acordo com Thompson (2001), os filmes de Hollywood dependem de personagens com traços bem definidos tanto para efeito de causalidade quanto de compreensibilidade, por isso filmes com apenas um protagonista costumam ser os mais compreensíveis, apresentando menos desafios para audiência enquanto progridem de cena a cena (THOMPSON, 1999).

A abordagem formalista de Kristin Thompson (1999) parece demonstrar, empiricamente, como as estruturas narrativas influenciam o sucesso das produções audiovisuais perante o público, e são capazes de ser transmitidas espontaneamente, condicionando nosso modo de consumir filmes. Afinal, nem sempre os próprios cineastas e roteiristas estão conscientes da presença de padrões narrativos. O fato deles se apresentarem de modo tão espontâneo e constante ressalta, mais uma vez, a importância da forma.

A partir da análise de uma amostragem que abrange desde a Era dos Estúdios até o fim da década de 1990, Thompson (1999) percebeu que a grande maioria dos filmes de Hollywood se dividia nessas quatro partes – apresentação, ação complicadora, desenvolvimento e clímax –, e que geralmente os maiores pontos de virada forneciam as transições existentes entre cada segmento. Além disso, os filmes muitas vezes apresentam um “turning point” (ou ponto de virada) crucial, localizado aproximadamente na metade de sua duração. 

O mais importante para os filmes de Hollywood, de acordo com Thompson (1999), é que o roteiro possua uma premissa, e se ela mudar de rumo e depois for retomada isso aumenta as chances de prender a atenção do público. Thompson afirma que o motivo mais frequente para uma narrativa mudar de direção é uma alteração nos objetivos do protagonista. As metas do protagonista são centrais para desenhar o enredo no filme clássico, sendo possíveis de serem formuladas, desenvolvidas, alteradas, substituídas, buscadas ou perseguidas, bloqueadas, procrastinadas e, eventualmente, alcançadas ou não (THOMPSON, 1999).

É no primeiro segmento do filme, a apresentação, que a situação inicial se estabelece, geralmente quando o protagonista concebe uma ou mais metas, ou quando são introduzidas as circunstâncias que mais tarde levam à formulação das metas. No próximo segmento, o da ação complicadora, a narrativa é levada a outra direção. Isso pode envolver a busca do herói por uma meta concebida na apresentação, mas que teve que ser interrompida devido a algo repentino, tornando necessário mudar suas táticas dramaticamente. Em muitos casos a ação complicadora serve como uma “contra-apresentação”, construindo toda uma situação nova com a qual o protagonista deve cooperar.

A terceira grande parte, o desenvolvimento, costuma se distinguir bastante da ação complicadora. Até esse ponto uma quantidade considerável de premissas, metas e obstáculos foram introduzidos, por isso o desenvolvimento costuma demonstrar as dificuldades do protagonista enquanto busca seus objetivos. É comum que esta terceira parte do filme (que é a penúltima) envolva vários incidentes que criam ação, suspense e adiamentos (THOMPSON, 1999). 

O desenvolvimento geralmente termina no ponto em que todas as premissas relacionadas aos objetivos e linhas de ação já foram introduzidas, então o segmento final, que corresponde ao clímax, pode ter início. Nele, a ação 

muda para um progresso direto em direção à resolução final, normalmente aumentando de forma constante, até uma sequência concentrada de maior ação. A questão chave agora é: os objetivos do protagonista serão alcançados ou não? (THOMPSON, 1999, p. 29, tradução da autora) 

Thompson (1999) explica que o ponto de virada não é apenas um momento, e sim uma ação que pode durar algum tempo. Esses pontos costumam se relacionar com as metas dos personagens: podem ocorrer quando a meta de um protagonista é alcançada e ele articula isso; ou quando uma meta é alcançada e substituída por outra; ou até pode surgir uma nova premissa que eventualmente vai levar o protagonista a uma nova meta. Apesar do ponto de virada geralmente vir ao final de um segmento longo, isso não é obrigatório, e ele também pode ocorrer logo após a mudança de um segmento para outro (THOMPSON, 1999).

Os pontos de virada também não precisam ser demasiado dramáticos, podendo ser uma pequena ação, desde que decisiva, que determina o rumo que a próxima grande parte deve tomar. Ou podem ser a predominância de uma lógica causal, baseada na motivação do personagem, ou novas premissas, objetivos, decisões de mudar táticas, enfim, algo que crie a forma com que esses momentos se entrelaçam (THOMPSON, 1999).

Thompson observa que o seu esquema de apresentação, ação complicadora, desenvolvimento e clímax não representa um problema para filmes com mais de quatro partes. Nesses casos, ela observa que uma possibilidade seria duplicar a parte de desenvolvimento ou de ação complicadora, acrescentando um ponto de virada que enfatize a parte extra (THOMPSON, 1999). Filmes mais curtos também podem ser constituídos pelos quatro segmentos, que não necessariamente possuem uma duração equilibrada. A autora ainda acrescenta que um filme pode não ter pontos de virada (THOMPSON, 1999).

Adaptando as constatações formais de Thompson (1999) ao nosso objeto de pesquisa, buscaremos compreender de que forma a estrutura narrativa e as metas do protagonista, ou a mudança delas, servem aos objetivos do storytelling do Greenpeace. Afinal, quando o protagonista das narrativas é a própria audiência, no que consiste o clímax da história?  

Fundamentos da narrativa ocidental

Se nos atermos às narrativas ocidentais que envolvem ação, há o consenso de que o primeiro pensador a analisá-las minuciosamente foi Aristóteles. As suas reflexões foram fundamentais para estabelecer princípios narrativos que continuam presentes não só no teatro, como no cinema comercial e, consequentemente, no filme publicitário, gênero situado na intersecção entre a publicidade e o cinema.

Composta no século IV a. C., a Poética de Aristóteles (2004) foi a primeira grande teorização sobre as realizações da poesia. Seus escritos são considerados basilares para os estudos de teoria literária, sendo um marco importante para a arte narrativa, como demonstra Robert McKee em “Story” (2006), célebre manual de escrita de roteiros para cinema: “Em vinte e três séculos desde que Aristóteles escreveu Poética, os 'segredos' da estória viraram tão públicos quanto a biblioteca do outro lado da rua.” (MCKEE, 2006, p. 19).

De acordo com Aristóteles, mimesis – ou “imitação” – é o conceito principal no qual a atividade poética se baseia. Mimesis se refere àquilo que imita outras coisas, reproduzindo-as por arte ou experiência, através de cores, figuras, voz, ritmo, palavras e harmonia, separadamente ou combinadas. Ao conceber a poesia como a arte que imita apenas por palavras, em prosa ou em verso, Aristóteles (2004) se refere ao cognato do verbo poiein, que significa “fazer, fabricar, construir”; portanto, poeta seria aquele que fabrica, que faz, um texto ou um objeto.

A poesia é vista por Aristóteles como dotada de um caráter mais elevado do que a História, porque enquanto a primeira expressa o universal, a segunda expressa o particular: a História relata o que aconteceu, e a Poética, o que poderia acontecer. De forma semelhante, a poética possui em si dois aspectos: o seu verdadeiro âmbito, seja narração (epopeia) ou ação (tragédia), e o seu verdadeiro significado, enquanto correspondência ou retrato dos universais. O primeiro seria “o que aconteceu”, e o segundo, “o que poderia acontecer”.

Na tragédia grega, a poética serve-se da ação e, por meio da compaixão (eleos) e do temor (phobos), provoca a purificação (katharsis) de tais paixões. Seis partes a constituem: enredo (mythos), caracteres (eles), elocução (lexis), pensamento (dianoia), espetáculo (opsis) e música (melopoiia). Cabe ressaltar que mythos, equivalente a enredo, é destacado por Aristóteles como o princípio e a alma da tragédia, portanto o filósofo foi o primeiro a reconhecer que a estruturação dos acontecimentos seria o seu elemento mais importante.

Para Aristóteles, “o poeta deve ser um construtor de enredos mais do que de versos, uma vez que é poeta devido à imitação e imita ações” (ARISTÓTELES, 2004, p. 55). Ainda sobre o enredo (mythos), destaca que, por ser a tragédia a imitação de uma ação completa que formaria um todo, ele deve possuir uma extensão bem definida, contendo princípio, meio e fim. Enredos bem-estruturados não devem começar nem acabar ao acaso, por isso Aristóteles (2004) observa:

o enredo, como imitação que é de uma ação, deve ser a imitação de uma ação una, que seja um todo, e que as partes dos acontecimentos se estruturem de tal modo que, ao deslocar-se ou suprimir-se uma parte, o todo fique alterado e desordenado. Realmente aquilo cuja presença ou ausência passa despercebida não é parte de um todo (ARISTÓTELES, 2004, p. 53)

O fato de as tragédias possuírem início, meio e fim – ou seja, unidade da ação – é outro aspecto que as diferencia das narrativas históricas. Além disso, tragédias se caracterizam por provocar reações nas pessoas, como mobilização e exaltação. Uma tragédia bem-sucedida leva as pessoas a passarem por uma espécie de “purificação”, correspondente à palavra grega katharsis, cuja natureza e efeitos psicológicos são decorrentes da experiência emocional que assistiram. Essa purificação ocorre pelo despertar de duas emoções: phobos, que significa aflição ou perturbação decorrente de se imaginar sofrendo uma desgraça destrutiva ou dolorosa, devido a acontecimentos próximos e imediatos; e eleos, que corresponde à compaixão por aqueles que são dignos de pena, atingidos pela desgraça sem o merecer (ARISTÓTELES, 2004).

Para despertar esses sentimentos, a imitação deve conter em sua ação completa alguns fatos que inspiram temor e compaixão e que são suscitados com maior facilidade quando provocam uma quebra de expectativa, porém mantendo uma relação de causalidade entre si. Essa dinâmica deve fazer parte da estrutura da tragédia, comparada por Aristóteles a um nó seguido por um desenlace:

Toda a tragédia tem um nó e um desenlace: os fatos exteriores à ação e alguns dos que constituem essa ação formam, muitas vezes, o nó, e o resto é o desenlace. Entendo por nó o que vai desde o princípio até o momento imediatamente antes da mudança para a felicidade ou para a infelicidade e por desenlace o que vai desde o início desta mudança até o fim (ARISTÓTELES, 2004, p. 74)

Outro conceito importante presente nas tragédias é o de hamartia, que corresponde a um erro cometido sem querer. Seja por um erro de cálculo ou acidente, esses erros são cometidos por pessoas que não se distinguem nem pela sua virtude nem pela justiça, e que caem no infortúnio não por maldade ou perversidade; ou seja, pessoas comuns. Na tragédia ideal de Aristóteles, a hamartia seria uma forma de ignorância que desencadeia consequências desastrosas, mas não subverte a integridade moral do herói trágico.

O segundo elemento mais importante da tragédia, logo após a estruturação dos acontecimentos, são os caracteres ou personagens. Aristóteles ressalta que eles estão sempre sujeitos ao enredo, porque os homens “não atuam para imitar os caracteres mas os caracteres é que são abrangidos pelas ações. Assim, os acontecimentos e o enredo são o objetivo da tragédia e o objetivo é o mais importante de tudo” (ARISTÓTELES, 2004, p. 49).

Em terceiro lugar vem o pensamento, que deve ser capaz de exprimir o que é possível e apropriado por meio da palavra, e em quarto lugar a elocução, que se diferencia do pensamento por ser a comunicação dele por meio de palavras, porém dotada de estilo, em verso ou em prosa. A elocução deve ser clara, mas sem ser banal, pois fica vulgar se forem usadas palavras muito comuns. Por outro lado, se usarem muitas palavras raras, como metáforas ou expressões estrangeiras, ela pode resultar em enigma ou “barbarismo”. Assim, Aristóteles recomenda misturar palavras comuns e raras de forma moderada (ARISTÓTELES, 2004).

Interessante ressaltar a definição aristotélica de metáfora, que hoje consideraríamos abranger sinédoque e metonímia: para o filósofo, “metáfora é a transferência de uma palavra que pertence a outra coisa, ou do gênero para a espécie ou da espécie para o gênero ou de uma espécie para a outra ou por analogia” (ARISTÓTELES, 2004, p. 83). A habilidade de construir boas metáforas seria indispensável para um bom poeta, devido à própria natureza da poética enquanto mimesis. “De fato, esta é a única coisa que não se tira de outrem e é sinal de talento, porque construir bem uma metáfora é o mesmo que percepcionar as semelhanças” (ARISTÓTELES, 2004, p. 90).

Ao refletir sobre as origens da imitação, Aristóteles afirma que ela é natural aos seres humanos desde quando são crianças, e que o fato de possuírem maior capacidade para imitar, adquirindo assim seus primeiros conhecimentos, os diferencia dos outros animais. Ou seja, além das pessoas se entreterem com as imitações, assisti-las leva a aprendizados e deduções sobre o que as ações estão representando.

Seja reconhecendo a função das narrativas para a transmissão de experiências, seja hierarquizando os elementos mais importantes da tragédia, as observações que provêm do legado deixado por Aristóteles (2004) ampliam as possibilidades de analisarmos a estrutura narrativa dos filmes publicitários.

A Jornada do Herói

Dito de forma simples, Joseph Campbell considera que a mitologia e os ritos servem principalmente para fornecer os símbolos que levam a humanidade a avançar, em um movimento que se opõe ao de outras fantasias humanas, que poderiam levar os indivíduos a uma regressão (CAMPBELL, 2013). Ao longo de uma jornada mítica que se divide em três fases – a partida, a iniciação e o retorno –, cabe ao herói demonstrar a força do ego-consciência contra as forças do inconsciente, a fim de combater suas sombras e integrá-las, realizando uma síntese dos opostos. 

O que nos interessa nesta pesquisa é, sobretudo, entender como essa estrutura mítica influencia os métodos de storytelling audiovisual, em particular os filmes publicitários. Por isso ela será abordada a partir de Christopher Vogler, autor de “A jornada do escritor" (2015), um manual direcionado a contadores de histórias e roteiristas, que tornou mais acessível a aplicação dos conceitos da Jornada do Herói a produções audiovisuais. 

Ao concordar com a ideia do monomito, Vogler (2015) defende a existência de um padrão universal de narrativa, afirmando que “todas as histórias consistem em poucos elementos estruturais comuns” (VOGLER, 2015, p. 31). Apesar de infinitamente variável, esse padrão apresentaria constância na sua forma básica, fazendo uso de determinados pontos de referência ou fontes de inspiração, e tendo entre seus princípios de planejamento os arquétipos, que refletem diferentes aspectos da mente humana. 

O esquema da Jornada do Herói adaptado por Vogler (2015) para criar roteiros é semelhante ao de Campbell (2013), porém as 17 etapas do esquema original¹ foram reduzidas a 12 etapas. Estas seriam: mundo comum; chamado à aventura; recusa do chamado; mentor; travessia do primeiro limiar; provas, aliados e inimigos; aproximação da caverna secreta; a provação; recompensa (empunhando a espada); o caminho de volta; ressurreição; e retorno com o elixir. Além disso, Vogler (2015) enfatiza a existência de quatro pontos de virada, ou clímaces, que alteram a direção da jornada ao estabelecerem novos objetivos para o herói. Esses clímaces estariam situados na travessia do primeiro limiar (marcando o primeiro ato), na provação (marcando o fim da primeira parte do segundo ato), no caminho de volta (no fim da segunda parte do segundo ato), e no final da história (clímax do terceiro ato e de toda a história). 

A história contada a partir de Vogler (2015) tem início quando o herói é levado a um mundo especial, novo e estranho, diferente do seu mundo comum, e logo é apresentado a um desafio que o retira da sua zona de conforto. Esse chamado mostra o que está em jogo, levantando uma questão, às vezes incômoda, que desperta curiosidade, porém, o herói sente medo e hesita. Ele pensa em desistir porque ainda não está comprometido com a Jornada. Então surge outro personagem, geralmente um Velho ou Velha Sábia, para encorajar o herói a enfrentar o desconhecido, oferecendo conselhos, orientação ou instrumentos para que atravesse o primeiro limiar. De acordo com Vogler (2015), é importante que esse mentor só o acompanhe até certo ponto da jornada, pois o herói deve enfrentar o desconhecido sozinho. 

Quando o herói aceita enfrentar as consequências de lidar com o desafio do chamado, significa que ele está comprometido com a aventura. Encontra novos desafios, passa a aprender as regras do mundo especial e obtém informações importantes, de modo que o seu caráter se desenvolve enquanto reage à pressão das provas e dos testes. Ao se aproximar da “caverna secreta”, o herói cruza o segundo limiar principal, chegando ao local em que o objeto da missão está escondido. É o momento de se preparar para adentrar a caverna e lutar contra um perigo supremo. 

A provação do herói consiste em confrontar o seu maior medo, enfrentando a possibilidade de morte ao lutar contra forças hostis. É o momento crucial da história, principal fonte do mito heroico, porque nele o público experimenta maior suspense e tensão, sem saber se o personagem vai sobreviver. Quando o herói celebra a sua vitória, toma posse de sua recompensa, que, em alguns casos, também é o momento de reconciliação com a anima. 

O que acontece com o herói acontece também conosco. Somos incentivados a vivenciar o instante à beira da morte com ele. Nossas emoções são temporariamente oprimidas para que elas possam ser revividas quando o herói voltar da morte. O resultado dessa ressurreição é, para nós, a sensação de alegria e euforia. (VOGLER, 2015, p. 54). 

Segundo Vogler (2015), a maioria dos filmes de Hollywood está dividido nesses três atos, que podem ser resumidos como: a decisão do herói de agir, a ação em si e as consequências da ação (VOGLER, 2015). Outros autores que adaptaram a Jornada do Herói, como Donald Miller (2019), que a aplica na publicidade, elaboraram métodos próprios para reproduzir essa mesma forma. Para esta pesquisa, é importante esclarecer que os filmes publicitários, devido à sua duração bastante reduzida, não possuem tantos personagens nem desenvolvem todas as etapas da Jornada do Herói descrita por Vogler (2015) ou Campbell (2013). No entanto, veremos no segundo capítulo, a partir dos estudos formalistas de Kristin Thompson (1999), que um esquema semelhante em seus pontos de virada pode ser observado nas narrativas clássicas de Hollywood.

O que Vogler (2015) define como arquétipos, em sua adaptação da Jornada do Herói, são símbolos de experiências de vida universais, mas estão além das imagens arquetípicas que já descrevemos. Eles também são interpretados como funções temporárias que servem para alcançar determinados efeitos nas narrativas, ou como máscaras que os personagens usam para fazer a história avançar. De certa forma, podemos olhar para os arquétipos como facetas da personalidade do herói, que reúne e incorpora a energia e os traços desses personagens (VOGLER, 2015). 

Isso porque o herói representa o indivíduo, a identidade pessoal. Ele é aquele que se distingue dos outros, separando-se da sua família ou comunidade em busca de sua totalidade, e também aquele que sacrifica a si mesmo pelos outros, protegendo e servindo. 

Todos os vilões, pícaros, amantes, amigos e inimigos do Herói podem ser encontrados dentro de nós mesmos. A tarefa psicológica que enfrentamos é a de integrar essas partes separadas em uma entidade completa, equilibrada. O ego, o Herói que pensa estar separado de todas as suas partes, deve se incorporar a elas e tornar-se um ser único (VOGLER, 2015, p. 68)

Ao explorarmos a estrutura de códigos terciários vimos que, além de eles serem binários, caracterizam-se por sua polarização e assimetria. A partir dos conceitos trabalhados neste capítulo destacamos as oposições entre: luz e sombra; consciência e inconsciente; humanidade e natureza. A luz, a consciência e a humanidade estão situadas no mesmo polo, que costuma entrar em conflito com o polo oposto, geralmente ameaçador: sombra, inconsciente e natureza. Porém há uma oposição preponderante, presente em mitos e histórias das mais diversas culturas, que não pode ser esquecida: a oposição entre a vida e a morte. O caráter universal dela reside no fato de que, por ser a morte mais forte do que a vida, cabe à humanidade lutar pela sua sobrevivência (BYSTRINA, 1995). 

Compreender as relações estabelecidas entre os textos culturais, destacando a existência de tais oposições e conflitos, possibilitou a elaboração do método de análise dos filmes publicitários que explicamos no terceiro capítulo. Nele, expomos como a estrutura da quaternidade mítica (CANEVACCI, 1984), que está na base da Jornada do Herói, pode ser adaptada para convocar o herói à “aventura” de se conciliar com a natureza. 


¹ Em “O Herói de Mil Faces”, Joseph Campbell (2013) divide as 17 etapas em três fases: a partida, que envolve as etapas do chamado da aventura, da recusa do chamado, do auxílio sobrenatural, da passagem pelo primeiro limiar, e do ventre da baleia; a fase da iniciação, abrangendo o caminho das provas, o encontro com a deusa, a mulher como tentação, a sintonia com o pai, a apoteose e a benção última; e, por fim, a fase do retorno, com as etapas: a recusa do retorno, a fuga mágica, o resgate com auxílio externo, a passagem pelo limiar do retorno, senhor de dois mundos e liberdade para viver.

Sobre mitos, símbolos e arquétipos

Antes de investigarmos como os filmes publicitários do Greenpeace fazem uso estratégico do storytelling, é importante ressaltarmos algumas particularidades sobre o objeto de pesquisa. Uma característica dos filmes publicitários é que, apesar de circularem amplamente por meio da internet, sua linguagem própria foi desenvolvida a partir do ponto de contato entre televisão e publicidade. E, por ocuparem há décadas uma posição de destaque na cultura midiática, eles constituem um gênero discursivo que dialoga com outros sistemas, como o social, o artístico, o psíquico e o mítico (CAMARGO, 2011). 

Em “Mito e filme publicitário: estruturas de significação”, Hertz Wendell de Camargo (2011) define filme publicitário como um enunciado que serve para narrar uma história em poucos segundos, e assim construir nossa percepção sobre um produto, marca, serviço, instituição ou candidato, “tudo sob a política (códigos) de uma linguagem publicitária dentro de outra linguagem, a televisual, escondendo, na verdade, uma estratégia de mercado” (CAMARGO, 2011, p. 9).

De acordo com o autor, a publicidade, enquanto texto que reflete a cultura, também é capaz de agregá-la com novos sentidos. Os filmes publicitários, com sua natureza textual-imaginativa, são “reais à medida em que são territorialistas, querem se embrenhar na mente e na alma, com mais ou menos consentimento do espectador, para sobreviverem entre nossas memórias, nutrindo e se nutrindo do imaginário” (CAMARGO, 2011, p. 11). Talvez por isso, a presença de referências míticas nas narrativas audiovisuais pode passar despercebida não só pela audiência, mas pela própria equipe de criação. 

É essencial reconhecer que, quando se trata do uso de recursos narrativos conhecidos como storytelling, as referências míticas podem surgir tanto de forma inconsciente durante o processo criativo, quanto podem fazer parte da estratégia de comunicação. A fim de analisarmos tais referências nos filmes publicitários do Greenpeace, introduziremos alguns conceitos-chave para a presente pesquisa, tomando como base estudos desenvolvidos no âmbito da Semiótica da Cultura, que possibilita o diálogo entre diferentes campos como Antropologia, Psicologia Profunda e Teoria Literária.

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