"A vida faz mais do que se adaptar à Terra; ela a modifica. A evolução é uma dança bem engendrada na qual a vida e o ambiente material formam um par. Dessa dança emerge a entidade Gaia." (James Lovelock)

Conclusões

Com uma proposta interdisciplinar, optamos pela Semiótica da Cultura como aporte teórico por ela possibilitar um estudo dos sistemas culturais como abertos, portanto sempre em diálogo com outros sistemas. Assim, consideramos que os textos míticos e os textos publicitários estabelecem relações não só entre si, mas também com diferentes campos do conhecimento, entre eles a Teoria Literária e a Psicologia Analítica. Esta última ganha maior destaque ao longo da dissertação por oferecer uma conceitualização do arquétipo da Grande Mãe (NEUMANN, 2021), imprescindível para o desenvolvimento da pesquisa. 

Verificamos que os filmes publicitários analisados produzem sentidos que, além de refletirem os objetivos do Greenpeace enquanto organização transnacional que promove campanhas para engajar mais pessoas em torno da causa ambientalista, ainda se referem a simbolismos profundos sobre a relação entre humanidade e natureza. E a abordagem interdisciplinar proporcionada pela Semiótica da Cultura se mostrou fundamental, uma vez que na prática do storytelling estão presentes conceitos de diversas áreas.

Por meio do levantamento bibliográfico acerca do estudo de mitos e movimentos literários, esperamos ter contribuído para a contextualização do storytelling a partir de suas possíveis fontes teóricas. A princípio, notamos que algumas abordagens mercadológicas propagam o uso de fórmulas e regras narrativas (MILLER, 2019; MARK; PEARSON, 2001), enquanto outros autores (VOGLER, 2015; MCKEE, 2006) afirmam fazer uso de formas, não fórmulas. Em um momento posterior, foi de fundamental importância diferenciar as análises estruturalistas e formalistas (BONNICI, 2009; FRANCO JR, 2009), reconhecendo as contribuições da teoria literária para o estudo das estruturas narrativas, para compreendermos a influência delas na elaboração dos diferentes métodos que compõem o storytelling

Recuperar as bases da estrutura narrativa ocidental, a partir dos escritos de Aristóteles (2004) sobre a tragédia grega, expandiu nossas perspectivas quanto às raízes culturais do storytelling. No entanto, por se tratar de um tema tão extenso, foi necessário limitar o alcance do levantamento bibliográfico à contextualização de formas populares do storytelling no meio publicitário (SALMON, 2010; BOJE, 2014) e cinematográfico (THOMPSON, 1999; VOGLER, 2015). Aproveitamos para destacar a emergência, na década de 1980, de um Paradigma Narrativo na área de comunicação (FISHER, 1987), e os estudos realizados por Christian Salmon (2010) e David Boje (2014) sobre o uso do storytelling em diferentes contextos. 

Os levantamentos demonstram que, por mais que a Jornada do Herói (CAMPBELL, 2013) tenha se consolidado como a estrutura narrativa mais influente das últimas décadas, as práticas de storytelling são tão diversas quanto as histórias que podem ser contadas. E, talvez pelo fato de os sistemas de significação estarem em constante diálogo com outros sistemas, diferentes autores oferecem suas próprias interpretações para conceitos já estabelecidos. Um exemplo está na própria noção de arquétipo, definido pela Psicologia Analítica como uma instância psíquica (JUNG, 2008), que foi adaptado a partir dos estudos formalistas por Vogler (2015) para ser reinterpretado como uma função dentro da narrativa cinematográfica.

Como já era esperado, o apelo emocional é acentuado nos três vídeos, com destaque para a presença de elementos da tragédia grega no vídeo “Jornada das Tartarugas”, e serve como estratégia do storytelling para envolver mais pessoas. Mas, quando a Mater surge em seu aspecto terrível, é a sua força que se impõe ameaçando Diabolus com desastres naturais que levariam a humanidade de volta aos tempos de harmonia com a natureza. Assim, constatamos que o Greenpeace faz uso de simbologias do Fim do Mundo, presentes desde o século XX em movimentos secularizados (ELIADE, 1972), o que pode tornar os filmes publicitários ainda mais persuasivos. 

Um dos pontos que poderiam ter sido mais explorados é o lirismo do texto, das metáforas, presentes no vídeos. Em "Eu sou a Amazônia", por exemplo, o fato de a floresta se posicionar em uma rica complexidade de subjetividade, poderíamos abordar mais a linguagem verbal e a função poética, conativa, que é fundamento da publicidade por meio da persuasão e do convencimento. Mas, como o foco da dissertação foram as relações entre os diferentes textos e a estrutura narrativa dos filmes publicitários, optamos por nos concentrar mais nas imagens exibidas do que no texto da narração. Essa decisão, de priorizar as imagens, acabou por ser guiada espontaneamente pelos estudos de Jung (2008) e Neumann (2021), fortemente imagéticos.

Em relação ao estudo dos filmes publicitários enquanto gênero textual, esperamos ter contribuído tanto no que tange suas intersecções com os gêneros publicitário e cinematográfico, quanto em relação às estratégias de storytelling utilizadas para criar maior conexão com a audiência, persuadindo-a a agir conforme a Call to Action. A análise dos filmes publicitários do Greenpeace através da metodologia da quaternidade mítica (CAMARGO, 2011) ainda permitiu entender como a audiência é incluída na narrativa de forma estratégica, ao se identificar com a posição de Filius. Conscientemente ou não, as equipes de criação construíram os demais personagens de modo a reproduzirem o esquema junguiano original, que caracteriza o “espírito” do cinema (CANEVACCI, 1984).

As interpretações possibilitadas pela análise dos vídeos a partir da quaternidade mítica, aliada a considerações acerca do cinema comercial e da publicidade, demonstram a pertinência do estudo desse esquema narrativo que, por se tratar de uma forma consolidada na sociedade ocidental, leva a um maior envolvimento do público. No entanto, também percebemos que a Jornada do Herói apresenta um movimento cíclico, que vai desde a separação ao retorno para casa, o que nos remete ao Grande Círculo. Isso nos levou a repensar a premissa inicial, quando a consideramos uma estrutura narrativa com ênfase individualista: o fato de ela descrever o processo de individuação não significa, necessariamente, que ela seja individualista, mas que a transformação ocorre em um nível individual, psicológico. 

À semelhança dos mitos do Fim do Mundo (ELIADE, 1972), que são cíclicos, a Jornada do Herói possui uma etapa de regeneração, ou ressurreição, o que permite a renovação do ciclo. Além disso, se simplificarmos o esquema desenhado por Vogler (2015) a partir de Campbell (2013), constatamos que a estrutura narrativa possui movimentos em comum com os quatro segmentos que usamos para analisar os vídeos. Em certo ponto do trabalho, até reavaliamos se a Jornada do Herói seria realmente essencial para a análise só por estar presente na premissa inicial. Decidimos por mantê-la como referencial, devido à sua influência e popularidade, e por servir como contraponto para interpretarmos as narrativas ambientalistas.

No entanto, considerando a integração dialógica entre teoria, análise e resultados, reconhecemos que a Jornada do Herói se diluiu um pouco, diante de outras questões que surgiram ao longo da dissertação. Uma das dificuldades foi justamente estabelecer prioridades diante de tantos textos, ainda mais por esta ser a primeira pesquisa da autora na área de audiovisual. Entre as perguntas que surgiram, e que a pesquisa poderia tentar responder, destacamos: por que não se constata a Jornada do Herói tão evidenciada nos filmes publicitários sobre meio ambiente? E se a Jornada do Herói contém em si um Grande Círculo, é porque também obedece à ordem cíclica da Grande Mãe? 

Como já existem várias adaptações e propostas para inovar a estrutura narrativa proposta por Campbell (2013), uma forma de responder às questões seria tensionando a Jornada do Herói, comparando-a com a Jornada da Heroína (MURDOCK, 1990) para estabelecer paralelos com o ecofeminismo, por exemplo. Não foi possível nos estender tanto em nossa análise, em parte devido às dificuldades enfrentadas na adaptação do esquema patriarcal da quaternidade mítica para um esquema matriarcal, que perduraram até o momento da qualificação, quando no modelo apresentado ainda constava um Pater. Por isso, mesmo cientes de que abordar a Jornada da Heroína poderia enriquecer o trabalho, optamos por focar nos estudos sobre storytelling como tecnologia da comunicação privilegiando o modelo da Jornada do Herói, e tomá-lo como contraponto para as narrativas ambientalistas permitiu explorarmos como estas fogem ao esquema patriarcal.

Isso não impediu que novas questões fossem elaboradas. Se, por um lado, observar os paralelos entre a Jornada do Herói, os quatro segmentos (THOMPSON, 1999) e a quaternidade mítica foi útil para interpretarmos os elementos dentro das narrativas, por outro, enfraqueceu a oposição entre as narrativas ambientalistas e as narrativas que seguem o modelo da Jornada do Herói, como havíamos sugerimos em nossa premissa. Mas isso significa que a Jornada do Herói também pode romper com a consciência solar, patriarcal, idealizada, que projeta seus valores morais em um Pater? É mais fácil chegar a conclusões quando os papeis são bem definidos, quando o Filius enfrenta o Diabolus, porém o que vimos foi a identificação entre estes dois e a ambivalência da Mater. Ao final, concluímos que a maior diferença entre a Mater e o Pater está no fato deste último não demonstrar ambiguidade ao agir.

Com a análise das estruturas narrativas, observamos que o esquema patriarcal foi substituído por um esquema matriarcal em dois filmes publicitários, e que em ambos os casos a Mater pode ser relacionada à imagem de Gaia. No entanto, nesses vídeos o papel da Grande Mãe não é apenas bondoso, como o discurso ambientalista pode às vezes parecer sugerir. Nossa percepção da ambivalência da Grande Mãe foi aprimorada a partir dos estudos de Erich Neumann (2021), que abordam essas duas faces, bondosa e terrível, e também a partir da Hipótese de Medeia e da Hipótese de Gaia. Assim retornamos à hipótese levantada na introdução compreendendo que a Grande Mãe também aparece nos filmes publicitários como Mãe Terrível. 

A princípio, exploraríamos a Hipótese de Gaia como representação ambientalista, por meio da análise do arquétipo da Grande Mãe. Mas ao longo da análise constatamos que não é só a Mãe Bondosa que o Greenpeace usa estrategicamente: sempre que Mater está presente, a Mãe Terrível também está. O fato do papel da Mater ser diferente do desempenhado por um Pater modifica o sentido da narrativa: a Mater é ambivalente, sendo ao mesmo tempo aquela que dá a vida e aquela que priva os seres dela. A Terra, como Grande Mãe, é ambivalente porque se trata da nossa própria realidade, complexa e contraditória, contendo em si todos os seres.

A perspectiva sistêmica da Hipótese de Gaia (LOVELOCK, 2006) defende as condições de interdependência dos seres na biosfera. Já para a Hipótese de Medeia, não só a vida interfere nas condições de vida dos seres vivos em diferentes locais do planeta, mas o oposto também é verdadeiro: a vida afeta a morte. Inclusive a morte final, pois de acordo com Ward (2009), o fim dos organismos vivos na Terra será ditado pela vida da Terra, e não pelo sol que, em expansão, desencadearia a perda de oceanos e de oxigênio na atmosfera e uma diminuição da temperatura do planeta. Essa ideia, de que a vida na Terra vai ditar a morte final de todos os seres, corresponde à imagem da Grande Mãe como Grande Círculo.

Se, na década de 1970, a hipótese de Gaia não era bem recebida, atualmente existe um relativo consenso acerca dela, o que é criticado por Peter Ward (2009). Ele afirma que apenas uma minoria da comunidade científica acredita que a vida só é benigna para a sua própria espécie, e muitos estudos recentes afirmam que a evolução ocorre basicamente na biosfera -- e não só a nível das espécies -- e que isso otimizou as condições planetárias. Essas conclusões, que provém da Hipótese de Gaia, são criticadas por Ward (2009), que também se coloca contrário à visão mítica, popular, de que a Terra seria literalmente um organismo vivo, como citamos na introdução da dissertação. 

Entendemos que o storytelling, as estruturas narrativas e os mitos organizam a realidade, ensinando a lidar com ela e dando sentido ao mundo. Portanto, nada mais natural do que projetar na natureza um ideal equilibrado para defender a sua preservação, o que pode parecer uma idealização da consciência patriarcal, por não enxergar a ambivalência da Mãe Natureza. Entretanto, idealizá-la como inerentemente boa não significa que ela seja bondosa com a humanidade, mas com toda a biosfera: é a humanidade que deve sacrificar suas ambições de domínio da natureza para manter as condições ambientais propícias a vida. Isso não faz sentido na Hipótese de Medeia, pois segundo ela a Terra não busca condições de equilíbrio para todos os seres, e nem mesmo se tomarmos a Gaia mitológica como referência, conforme descrita por Hesíodo: ela não é harmoniosa, mas assustadora, surgida do Caos. É o caos que dá origem à vida. 

Nos vídeos, uma aproximação da humanidade com a Natureza só é possível porque esta é colocada como uma autoridade que também acolhe e nutre. Por questões estratégicas, não caberia ao Greenpeace explorar somente a Mãe Terrível, a Natureza como uma potência aterrorizante, porque dificilmente a audiência buscaria se juntar a ela. Não há como criar uma conexão com o caos primordial, até porque as histórias buscam organizar esse caos: enquanto a Jornada do Herói organiza o caos psíquico, para que o indivíduo elabore seus desafios em um esquema cíclico que permita um constante aprimoramento e aprendizado, o storytelling do Greenpeace vai em outro sentido. Nele, a Mater busca mostrar ao indivíduo que ele deve se reintegrar ao todo, e que essa reintegração é a ordem da natureza.

Vemos que o ideal de equilíbrio e harmonia tem sido usado pelo movimento ambientalista e que, para os fins do Greenpeace, pode atrair mais pessoas. Mas a imagem poderosa de uma mãe capaz de matar os próprios filhos ainda assombra, e cabe sugeri-la nas narrativas para lembrar que a humanidade deve obedecer a algumas leis, levando o heroi a abrir mão de sua individualidade para integrar o Grande Círculo. Nos vídeos, a Grande Mãe se aproxima na forma de anima, para não aniquilar o ego, e o poder de destruição da Mater é apenas sugerido, estrategicamente, para reforçar sua autoridade. Portanto, no storytelling ambientalista é a Mãe Natureza quem dá as ordens, e não a consciência patriarcal. Assumir a ambivalência da Grande Mãe é assumir a própria ambivalência.

Não há como negar a Mãe Terrível ou a Mãe Bondosa, pois ambas compõem o Grande Círculo, a Terra, que é a nossa própria realidade. Cabe ao contador de histórias decidir se, estrategicamente, cabe enfatizar o aspecto acolhedor ou ameaçador da natureza para persuadir sua audiência. E, nesse sentido, vimos que alguns filmes publicitários do Greenpeace rompem com o ideal patriarcal, o esquema ocidental, ao sugerirem a ambivalência matriarcal e reduzirem a importância do indivíduo. No vídeo em que a ambivalência não está presente, o sentimento despertado é de culpa, com a necessidade de a humanidade ser beneficente, bondosa, e salvar as tartarugas marinhas.  

Voltando a Gaia e a Medeia, concluímos que as duas hipóteses científicas fazem uso de metáforas que se referem a ambivalência da Grande Mãe. O ponto de principal diferenciação entre as duas é que Gaia vê todos os seres vivos, a biosfera em conjunto, evoluindo em busca de estabelecer condições de equilíbrio para todos, e que a humanidade causa o desequilíbrio ambiental. Medeia, por sua vez, enxerga a evolução como um complexo de forças, em que as espécies competem entre si, e defende que a humanidade deve tomar controle sobre a natureza para prolongar seu tempo de vida na Terra.

Se não podemos chegar a conclusões quanto ao que se discute no meio científico, se Gaia ou Medeia representam melhor a Terra, ao menos por meio das análises dos filmes publicitários podemos constatar que ambas –  Mãe Bondosa e Mãe Terrível – são usadas para persuadir pessoas em torno da causa ambientalista, rompendo com uma estrutura narrativa patriarcal. Como o nosso foco foi o conteúdo dos vídeos, também não podemos responder sobre os efeitos que surtem na audiência, mas é inegável que o imaginário em torno da Grande Mãe segue forte nas narrativas, sendo usado como recurso persuasivo. E, por meio do storytelling, os mitos seguem vivos em nossa cultura. 

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