"A vida faz mais do que se adaptar à Terra; ela a modifica. A evolução é uma dança bem engendrada na qual a vida e o ambiente material formam um par. Dessa dança emerge a entidade Gaia." (James Lovelock)

Além da Jornada do Herói...

Definiremos o storytelling, que em tradução livre significa o “ato de contar histórias”, como uma tecnologia de comunicação. Idealmente, esse conjunto de técnicas deveria ser executado por um storyteller que possua as devidas competências para identificar um conteúdo marcante e compartilhável, assim como para transmitir um conjunto de instruções que possibilite a quem consumir esse conteúdo a absorção de informações de valor, por meio de uma história capaz de prender a atenção do público.

Esta definição provém do livro “O Guia Completo do Storytelling”, escrito por Fernando Palacios e Martha Terenzzo (2016), que sintetizam: “O Storytelling – escrito assim, com S capitular – é uma tecnologia de comunicação que implica saber encontrar e contar uma história fabulosa, com propósito épico, de forma fantástica” (PALACIOS, TERENZZO, 2016, p. 63). Tal habilidade pode se desenvolver de forma espontânea, como demonstram os muitos contadores de histórias que não formulam um método próprio, nem saberiam listar os recursos e técnicas utilizados para causar o efeito desejado em seu público, e ainda assim são bons storytellers. Um exemplo é o presidente Ronald Reagan, que governou os Estados Unidos entre os anos de 1981 e 1989, e costuma ser lembrado por fazer uso de narrativas, verdadeiras ou não, para influenciar a opinião pública, muito antes do storytelling se consolidar como uma estratégia empresarial (FISHER, 1987; SALMON, 2010; BROOKS, 2001).

Como Palacios e Terenzzo (2016) reconhecem, as histórias são complexas e funcionam de forma sistêmica, como um organismo. Para criá-las não basta estudar suas partes, dissecando-as como se houvesse uma fórmula oculta, pois “só quem participa do processo de criação realmente entende o que está envolvido” (PALACIOS, TERENZZO, 2016, p. 80). Porém, se é principalmente por meio de estruturas narrativas que o storytelling se populariza no mercado, considerá-lo uma tecnologia de comunicação nos possibilita abranger diferentes técnicas e métodos, assim como destacar o seu uso por organizações motivadas a alcançar determinados objetivos. 

Em um breve levantamento histórico sobre o uso do storytelling no Brasil, Palacios e Terenzzo (2016) explicam que o país, após passar pelo processo de expansão das telecomunicações nos anos 1970, vivenciava o crescente fenômeno da globalização até meados da década de 1990. Ao longo desse período as empresas nacionais passaram a focar em necessidades como diferenciação estratégica e desenvolvimento de competências com pensamento sistêmico. Essas transformações seguiram avançando com o início da distribuição de internet em grande escala: a partir de 2005, a banda larga passou a ser distribuída para mais de metade da população brasileira, o que levou o storytelling a ter seu ponto de virada em 2006, apesar de já ter se estabelecido internacionalmente anos antes. 

O ato de contar histórias se tornou ainda mais presente nas empresas e na nos meios de comunicação brasileiros a partir de 2014. De acordo com os autores, a ampla disseminação dessa tecnologia aparentemente simples pode ser explicada pelo fato de nossa identidade ser formada pelas histórias que acumulamos, sejam elas nossas ou dos outros:

É de nossa natureza brincar de decodificar falas e ações passeando pelos porquês por detrás das escolhas dos personagens, refletir sobre o intrínseco e, assim, ler as entrelinhas. E, a partir daí, estabelecer conexões com nosso próprio background produzindo conclusões. (PALACIOS, TERENZZO, 2016, p. 114)

Manuais de storytelling costumam relatar como os seres humanos, desde os seus primórdios, já se reuniam ao redor de fogueiras para contar histórias, ressaltando como essa habilidade constitui parte fundamental da experiência de nossos antepassados. No entanto, talvez por se dirigirem a um público que se interessa sobretudo pela aplicação das suas técnicas aos negócios, esses manuais não costumam citar estudos ou teorias que expliquem a disseminação do uso de narrativas por organizações, que é o foco da presente pesquisa. 

Afinal, as histórias contadas por organizações para persuadir determinado público-alvo buscam atingir objetivos que se diferenciam daqueles visados pelos mitos, apreciados nas sociedades simples como histórias verdadeiras, valorizadas por seu caráter sagrado, exemplar e significativo (ELIADE, 1972). Nossa perspectiva dialoga com Christian Salmon (2010), que no livro “Storytelling: La máquina de fabricar historias y formatear las mentes” afirma que a arte narrativa, desde suas origens, busca lançar luz sobre a experiência da humanidade, revelando-a para as pessoas. Porém, o autor argumenta que a recente conversão desta arte ao storytelling levou a uma instrumentalização das narrativas com o objetivo de controlar opiniões (SALMON, 2010).

A popularização do que o autor denomina “uso instrumental da narrativa” (SALMON, 2010, p. 38) parece evidenciar a eficácia das estruturas e técnicas usadas por organizações para persuadir o público. Como afirma Christian Salmon, o storytelling

impõe sobre a realidade umas histórias artificiais, bloqueia as trocas, satura o espaço simbólico com séries e stories. Não conta a experiência passada, traça condutas, orienta o fluxo de emoções, sincroniza sua circulação [...] o storytelling estabelece engrenagens narrativas segundo as quais os indivíduos são conduzidos a se identificar com alguns modelos e se conformar a alguns protocolos (SALMON, 2010, p. 38, tradução da autora). 

Nas próximas páginas, debruçamo-nos sobre alguns dos estudos que influenciaram o desenvolvimento de métodos e recursos narrativos que difundiram o storytelling no mercado. Sabemos que a humanidade está imersa em narrativas desde tempos imemoriais, contando histórias que ordenam o mundo à sua volta, e que o Greenpeace faz uso dessa tecnologia de comunicação em seus filmes publicitários. Mas um breve levantamento sobre o estudo de narrativas permitirá compreendermos como, por meio do storytelling, os mitos voltaram a ser valorizados na sociedade ocidental após mais de dois milênios desde que, na Grécia Antiga, teve início o processo de dissociação entre mito e realidade.


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