"A vida faz mais do que se adaptar à Terra; ela a modifica. A evolução é uma dança bem engendrada na qual a vida e o ambiente material formam um par. Dessa dança emerge a entidade Gaia." (James Lovelock)
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O protótipo hipo-estrutural da quaternidade mítica

Os filmes publicitários foram analisados dentro do esquema quaternário desenhado por Massimo Canevacci no livro “Antropologia do Cinema” (CANEVACCI, 1984), em que ele explora os estudos de Carl Jung sobre a Santíssima Trindade, que reflete as bases da sociedade cristã ocidental, para analisar a estrutura de narrativas cinematográficas. É necessário esclarecer que a perspectiva de Canevacci (1984) se distancia da abordagem junguiana, que o autor critica, referindo-se aos arquétipos como imagens inconscientes não arquetípicas e argumentando que elas são estruturadas historicamente, e não universais (CANEVACCI, 1984).

Por mais que Canevacci (1984) discorde da visão arquetípica de Jung, ele considera importante analisar os problemas simbólicos relacionados a mito, rito e dogma enraizados na hipo-estrutura, que podem levar a efeitos perigosos se escaparem dela. A hipo-estrutura é definida pelo autor como:

patrimônio biopsíquico que não se esgota na dimensão econômica ou cultural, mas compreende em si também a dimensão de natureza, segundo um enfoque metodológico pelo qual ela só é o que é na medida em que é mediatizada por uma relação consciente ou inconsciente com o Homo sapiens (CANEVACCI, 1984, p. 18)

Um hábito hipo-estrutural presente desde os primórdios da humanidade, de acordo com o autor, é o ato de repetir várias vezes a mesma história, recorrendo-se a ela constantemente para se assegurar da ordem das coisas, como acontece com os mitos. Canevacci (1984) realiza uma crítica ao etnocentrismo do cinema a partir do esquema junguiano, considerando que a reprodução da quaternidade nos filmes comerciais se configura como um ritual, de forma semelhante aos mitos arcaicos. A quaternidade original é apresentada como:

Assim, considerando que o cinema, ou a representação fílmica, é produzida em torno da civilização patriarcal cristã-burguesa, Canevacci (1984) aborda Jung para investigar os elementos hipo-estruturais que compõem o filme comercial. Ao reduzir os arquétipos a protótipos, o autor os define como visões que, por meio do cinema, “estabelecem uma gigantesca ponte entre a alienação vivida nessa vida e a angústia existencial de séculos de civilização alienada” (CANEVACCI, 1984, p. 36). O que não diminui o fato de que a Jornada do Herói, examinada no primeiro capítulo, corresponde a esse esquema porque reproduz o “drama cosmológico divino – nascimento, afirmação e morte do herói, depois o sacrifício da ressurreição até a vitória do bem” (CANEVACCI, 1984, p. 47).

De acordo com o esquema junguiano adaptado por Canevacci (1984), Pater corresponde à origem de todas as coisas. Filius é o herói, que encontra suas origens no Pater e deve superar provas para conquistar seu objetivo. Contemporâneo ao Filius, e também o seu oposto, está o Diabolus, que assume a figura de “anti-herói, zona indistinta e incontrolada” (CANEVACCI, 1984, p. 56). Já o Spiritus nega a negação, aliando-se aos Filius para derrotar o inimigo comum, mas acaba sendo conduzido a este por possuir um caráter irracional e irrefletido.

Apesar dos protótipos não constituírem padrões universais, o autor afirma que ainda assim eles mantêm relação com a realidade, servindo como uma chave de interpretação distorcida. Por isso utilizaremos esta chave, previamente aplicada por Camargo (2011) em pesquisas sobre as simbólicas e os valores reproduzidos por produções audiovisuais, para analisar nosso corpus composto por filmes publicitários. A fim de interpretar os valores morais contidos na estrutura quaternária, é útil visualizarmos o original junguiano adaptado a um esquema mais “laico” (CANEVACCI, 1984, p. 68):

Este esquema moral, que reflete um conflito entre o Bem e o Mal, passa do pensamento simbólico-religioso para o cinema preservando seu teor maniqueísta. Segundo Canevacci (1984), por mais que seja possível modificar a narrativa combinando outros elementos já preestabelecidos e universalmente conhecidos, a estrutura quaternária geralmente permanece a mesma, reforçando o estereótipo de um sistema de oposições (CANEVACCI, 1984).

A ligação existente entre essa lógica maniqueísta e os valores judaico-cristãos da sociedade ocidental se evidencia no dogma da Santíssima Trindade. A partir do momento em que o “um”, indefinível, torna-se dual, cria-se um binário, e dentro dessa oposição o Diabolus se configura como adversário do Filius, que seria Cristo. O Filius, que é o filho e o logos, se contrapõe ao Diabolus que, por ser autônomo, não pode ser instrumento divino nem sujeito à soberania de Deus. Ocultar o Diabolus deu origem à Trindade cristã, que o “demoniza”, e com efeito “toda a cultura de massa – positiva, metafísica, materialista – continua a ter por objeto a demonização do outro e a beatificação do próprio si mesmo e do próprio grupo” (CANEVACCI, 1984, p. 55).

Partindo da perspectiva do autor, a estrutura da cruz quaternária é um esquema conservador na medida em que reflete as simbólicas de uma concepção de mundo patriarcal cristã-burguesa, reforçada pelo etnocentrismo do cinema. Para romper com os estereótipos, seria necessário questionar sua lógica fundada em oposições. O que nos leva de volta ao conceito de arquétipo primordial, desenvolvido por Neumann (2021), que reúne em si valores opostos, caracterizando-se, assim como o inconsciente, de forma ambivalente.

O arquétipo primordial corresponde à Grande Mãe, representação de uma divindade como unidade, contendo em si tudo o que a consciência ainda não foi capaz de dividir em antíteses. Por isso Neumann (2021) afirma que, antes da humanidade formar uma figura da Grande Mãe, surge uma ampla variedade de símbolos 

que se referem à sua imagem ainda não determinada e amorfa. Tais símbolos, especialmente os da natureza em todos os seus reinos, estão, de certa forma, marcados pela imagem do Grande Maternal, que vive neles e lhes é idêntica, sejam eles uma pedra, uma árvore, um lago, uma fruta ou um animal. Aos poucos eles se unem à figura da Grande Mãe como atributos e criam o círculo de aspectos simbólicos que cinge a figura arquetípica e se manifesta no mito e no rito (NEUMANN, 2021, p. 26).

Essas associações da Grande Mãe à natureza, ao mundo e à totalidade permitem que, na análise dos filmes publicitários do Greenpeace, o esquema de Canevacci (1984) seja adaptado para verificar se a estrutura quaternária original é reproduzida ou se a sua lógica é contestada. O questionamento dessa lógica seria um objetivo do storytelling ambientalista por possibilitar a integração entre a “humanidade” (representada pela audiência, no papel de herói, mas também pelos responsáveis pela destruição ambiental) e a natureza (na forma da Grande Mãe ou do narrador personagem, que são seres não-humanos antropomorfizados). Assim adaptamos o esquema:

De forma semelhante ao Pater, o simbolismo da Grande Mãe, que aqui denominamos Mater, também representa um Ente Supremo, cujo significado se aproxima ao das imagens arquetípicas do velho sábio ou do self. Pertencem à categoria Mater todas as imagens de harmonia entre humanidade e natureza, além de ideias relacionadas a mitos de criação, origem ou verdade, em particular na forma de códigos de conduta. Já o narrador-personagem, equivalente ao Spiritus, corresponde aos personagens antropomorfizados que se dirigem ao herói durante a narrativa, exercendo diferentes funções, principalmente com o objetivo de envolver a audiência despertando emoções. O herói, representado pelo Filius, é a própria audiência, uma vez que depende dela a ação mais importante da narrativa, que é o próprio objetivo dos filmes publicitários do Greenpeace: agir em prol da causa ambientalista. Por fim, o Diabolus corresponde às imagens de destruição ambiental, que incluem máquinas, poluição, queimadas e mortes, assim como todos os aspectos “sombrios” da interferência humana na natureza.

A adaptação do esquema exige mais uma alteração no sentido do Spiritus para se adequar à imagem arquetípica da Mater, de acordo com a descrição de Erich Neumann (2021). O autor explica, de forma simplificada, que há uma correlação do sol com a consciência patriarcal e da lua com a consciência matriarcal. Diferente da consciência patriarcal, que se eleva como um espírito puro, invisível e imaterial, o aspecto espiritual-lunar do matriarcado não se desliga da materialidade porque a própria feminilidade também não pode fazê-lo. 

A vivência que o matriarcado tem de si pode, como consideramos anteriormente, ser condensada na equação mulher = corpo = vaso = mundo. O fenômeno do mistério da transformação, quando surge o ‘espírito’, é também produto desse Grande Círculo, como sua essência luminosa, seu fruto e seu filho. O espiritual não aparece aqui como a concepção apolínea-solar-patriarcal do ‘ser-em-si’, como existência pura e perpétua, mas permanece ‘filial’, apreendendo-se como criatura surgida historicamente que não omite sua ligação com a terra e a mãe. (NEUMANN, 2021, p. 69)

Neumann (2021) explica que o espírito abstrato do patriarcado é expresso no mito judaico-cristão da criação por meio da palavra (“no princípio era o verbo”), ignorando que a própria palavra só é possível de ser articulada por meio do corpo, afinal, “a palavra ‘nasce’ como essência da totalidade corporal divina, o Grande Círculo” (NEUMANN, 2021, p. 74). Desse modo, o aspecto matriarcal do espírito, que encontra representação na lua, é depreciado pelo aspecto patriarcal e solar porque se preserva anímico, ainda que consista na forma mais elevada de evolução material e telúrica (NEUMANN, 2021). Esta é a representação do Spiritus que analisaremos nos filmes publicitários do Greenpeace. 

Call To Action: A audiência como protagonista

 […] os princípios e técnicas de storytelling, que até pouco tempo atrás pertenciam ao reino da literatura, cinema, teatro e contação de histórias no jardim da infância, saltaram para dentro das empresas e de uma vez por todas para a política dos oito países que, combinados, formam mais de 50% da política mundial (MCSILL, 2015, p. 32)

Ao longo do capítulo contextualizamos o uso instrumental da narrativa, destacando suas origens, abordando a função das histórias na tomada de decisões, passando pelos estudos de Narratologia e de comunicação organizacional, e destacando principalmente a popularização do storytelling na publicidade, assim como a constância de uma estrutura narrativa no cinema comercial. Voltando ao storytelling publicitário, resta explorarmos de que forma ele pode servir como estratégia de comunicação em uma organização da sociedade civil.

Em “Cultura do Consumo”, Isleide Arruda Fontenelle (2017) cita uma forma de prossumo relacionada à comunicação de ONGs: a prosuming conservation. A autora cita uma pesquisa etnográfica, realizada em duas ONGs de preservação da natureza, que demonstrou como elas atuam de forma semelhante a empresas capitalistas. Os prossumidores, neste caso, constroem a imagem e a experiência da natureza que eles pretendem conservar:

A análise dos websites dessas ONGs mostrou como os prossumidores são interpelados a não apenas contribuir com recursos financeiros, mas também a compartilhar, com amigos e familiares, o conteúdo criado em seus próprios sites pessoais, em conexão com os sites dessas ONGs. O conteúdo dos sites analisados sugere que isso permite que o prossumidor faça a diferença no projeto de salvar os animais africanos. (FONTENELLE, 2017, p. 139)

Vale lembrar que o movimento ambientalista, de acordo com Castells (2018), é bem sucedido em mobilizar pessoas porque, além de utilizar as tecnologias de comunicação a seu favor, caracteriza-se por seu pragmatismo. Dessa forma, ao dar ênfase à resolução de questões, "as pessoas percebem que são capazes de exercer influência sobre decisões importantes aqui e agora" (CASTELLS, 2018, p. 243).

Também já observamos na introdução desta pesquisa que o Greenpeace mantém em seu site a página Greenpeace Storytelling, dedicada a divulgar formas de usar o storytelling como estratégia, em especial para iniciativas que visam a conscientização ambiental (GREENPEACE, 2021). Mas, além deste projeto, constatamos que seu investimento na produção de narrativas audiovisuais reflete uma tendência do mercado. Como exemplo podemos citar as semelhanças dos filmes publicitários do Greenpeace com o método storybrand, entre elas o fato de ambos se referirem à audiência como protagonista, terminando seus filmes no que seria o clímax, com uma Call To Action.

Muitos consumidores já estão acostumados com frases como “Se você gostou do conteúdo, curta, comente e compartilhe”, que no marketing recebem o nome de Call to Action (CTA), ou chamada à ação. Apresentadas em conteúdos online que visam engajar usuários e expandir o alcance das marcas que a utilizam, essas chamadas têm o objetivo de persuadir, de forma simples e direta, a audiência a agir de determinada forma logo após a entrega de informações de valor ou uma mensagem impactante. 

Diferentes chamadas servem a diferentes objetivos, desde vender produtos até conquistar apoiadores em uma campanha de preservação ambiental. Porém, todas são posicionadas estrategicamente dentro do storytelling publicitário para alcançar o público-alvo, como Miller (2019) evidencia: 

Definimos um desejo, identificamos seus desafios, fomos empáticos em relação a seus sentimentos, estabelecemos nossa competência para ajudá-los e lhes demos um plano. Mas eles precisam que façamos mais uma coisa: que os exortemos a agir (MILLER, 2019, p. 95). 

Ao tratarmos dos vídeos publicados pelo Greenpeace Brasil, é primordial identificarmos a CTA de cada um deles para definirmos o objetivo das suas campanhas. Na forma de filmes publicitários, as histórias – contadas de modo a captar a atenção da audiência, despertar memórias e mitos presentes no imaginário e, enfim, causar emoção para engajar mais pessoas em prol da causa ambiental –, caracterizam-se pelo seu poder de persuasão. E mesmo quando a “ação” visada não é colocada de forma direta, os vídeos terminam com frases que a sugerem, implicitamente:

    • ­“Eu sou a Amazônia” (2020): “A Amazônia depende de nós, nós dependemos da Amazônia. #TodosPelaAmazônia.”;
    • ­“Jornada das Tartarugas” (2020): “6 em cada 7 espécies de tartarugas-marinhas estão ameaçadas de extinção. Precisamos de santuários marinhos em um terço dos oceanos para que as tartarugas e outras espécies fiquem a salvo. (...) Proteja os oceanos. Assine a petição. greenpeace.org.br/proteja-os-oceanos”;
    • ­“Tem um monstro na minha cozinha” (2020): “O desmatamento é um monstro que está devorando nossas florestas e nossa biodiversidade. Exija que as empresas e governos protejam a Amazônia e o nosso futuro. Compartilhe e ajude a proteger nossas florestas.”.
Durante a pré-análise, verificamos que todos os vídeos concluem suas narrativas com afirmações ou dados sobre a importância de preservar o meio ambiente. Desse modo, entregam um valor genuíno, do qual se espera convencer a audiência a partir de um storytelling que provoca sensibilização, conexão com a natureza, ou até identificação com os personagens que o narram. A CTA convoca a adesão da audiência à causa, seja por meio do uso de hashtags, assinatura de uma petição ou compartilhamento do conteúdo.

Duas características marcantes do herói, segundo Vogler (2015), são a ação e a disposição ao sacrifício. E o autor explica que o público costuma se identificar naturalmente com o herói, porque é através de sua perspectiva que se sente imerso na narrativa. De acordo com “A jornada do escritor” (2015), ao longo da história o protagonista tem como principal função aprender, enquanto vence obstáculos e alcança objetivos. Ao chegar no clímax do roteiro, depois de adquirir conhecimentos por meio da experiência e manifestar suas vontades e seus desejos, cabe ao herói realizar uma ação decisiva, de maior risco ou responsabilidade, da qual depende o destino dos outros personagens.

Por isso partimos da premissa de que a audiência constitui o herói dos filmes publicitários do Greenpeace. E as pessoas que compõem essa audiência, por consumirem os vídeos por meio do YouTube, também se tornam prossumidores, como explica Fontenelle (2017):

É no contexto das redes e mídias sociais que, de fato, encontramos a relação mais elaborada do prossumo como cocriação da experiência. Todo o conteúdo que viabiliza a existência desses espaços virtuais é feito por um agente que pode ser considerado um prossumidor, na medida em que tais espaços não existiriam sem o trabalho e o consumo ininterrupto daqueles que o acessam. (FONTENELLE, 2017, p. 139-140)

A partir dos três filmes publicitários que constituem o corpus da pesquisa, analisaremos como eles produzem sentidos sobre a relação entre humanidade e natureza. Para isto, adaptamos um esquema de interpretação desenvolvido por Massimo Canevacci (1984) a partir dos estudos da Psicologia Analítica, o que proporcionará um enfoque estrutural para a aplicação da análise de conteúdo (BARDIN, 2016). 

Marcas em crise, narrativas em disputa

Em “Storytelling: La máquina de fabricar historias y formatear las mentes”, Christian Salmon explica como o storytelling se popularizou nos EUA e alerta quanto ao potencial de influenciar pessoas contido no ato de contar histórias, cada vez mais popular entre os “gurus do capitalismo”. De acordo com o autor, as técnicas de storytelling emergiram nos EUA em meados da década de 1990, tomando formas mais sofisticadas à medida que os anos se passavam, tanto no universo da gestão empresarial, quanto no da comunicação política. Desde os tradicionais contadores de histórias até experiências de digital storytelling, suas técnicas mobilizam diversos tipos de narrativas. Até mesmo grandes empresas e o exército americano, característicos por sua seriedade e expertise, passaram a fazer uso de histórias ficcionais, úteis para se conectar com os colaboradores (SALMON, 2010).

Esse storytelling revival é constatado em diversas áreas, do jornalismo até métodos terapêuticos, sendo chamado por alguns pesquisadores de virada narrativa, ou o despontar de uma nova era narrativa (SALMON, 2010). Se antes as histórias eram vistas como uma forma de comunicação voltada para crianças, ou uma atividade de lazer – que interessaria apenas aos estudos literários, nos campos de linguística, retórica, gramática textual e narratologia –, para Salmon (2010) o fenômeno que surge com a expansão do uso do storytelling, reflete uma tendência no uso de narrativas como forma de controle.

O autor explica que a primeira área a tornar aparente o sucesso da abordagem narrativa foi a de Ciências Humanas, descrevendo-a como uma “virada narrativista” em meados dos anos 1990. Estendendo-se gradativamente para as Ciências Sociais, apenas nos anos 2000 a narrativa passaria a ser vista em áreas cada vez mais diversas, como Psicologia, Direito e Ciências Cognitivas. Essa virada coincide com a expansão da Internet nos EUA, bem como os avanços de novas tecnologias e informação e comunicação, o que facilitou para que as histórias se espalhassem mais rapidamente. 

No entanto, Christian Salmon (2010) constata que a maior influência do storytelling na publicidade está diretamente relacionada a uma mudança na forma de enxergar grandes corporações, ou, mais especificamente, grandes marcas. Tal transformação é evidenciada com a substituição da brand image, que dominava o marketing nos anos 1980, pela brand story no fim dos anos 1990 (SALMON, 2010). No começo dos anos 2000, o número de marcas registradas nos Estados Unidos aumentava significativamente, atingindo 140 mil marcas registradas somente em 2003. Novas marcas eram introduzidas ao mesmo tempo em que marcas estabelecidas se esforçavam para fortalecer sua presença, o que aumentava a competitividade e levava grandes empresas a investirem bilhões de dólares em publicidade. Porém, os consumidores americanos mostravam-se cada vez menos leais. Salmon (2010) relata como diversas marcas que, nos anos noventa, simbolizavam a prosperidade das multinacionais, bruscamente perderam seu prestígio e poder comercial no começo dos anos 2000. A publicidade parecia perder sua força e credibilidade, como se os consumidores tivessem passado a reagir negativamente ao excesso de promoções, pseudoinovações e marketing massivo (SALMON, 2010).

Nesse contexto, os consumidores já não podiam mais ser identificados apenas por sua categoria socioprofissional, pois ela não informava mais seus hábitos e desejos. Eles estavam se tornando “especialistas”, como reflexo de uma tendência crescente ao consumo responsável, ou mesmo ao “prossumo – do inglês prossumption, junção entre as palavras produção e consumo” (FONTENELLE, 2017, p. 131). Retornaremos ao tema no final do capítulo, observando que as ONGs também parecem ter se adequado a essa tendência mercadológica.

De acordo com Salmon (2010), o fim da era da publicidade de marcas foi acelerado com o surgimento dos novos meios de comunicação e das inúmeras possibilidades de difundir conteúdo pela internet. Mas para alcançar um maior número de pessoas, ou “viralizar”, as histórias contadas por marcas devem corresponder às expectativas e visões de mundo do público visado. “Quando são utilizadas na web, transformam a nós mesmos em storytellers, em propagadores de histórias, já que a fascinação que inspira uma boa história nos impele a repeti-la” (SALMON, 2010, p. 57, tradução da autora) . 

Uma das marcas mais impactadas pelas mudanças nos hábitos de consumo foi a Nike, que ainda nos anos 1990 passou a ser alvo de denúncias de ativistas do movimento antimarcas, após a circulação de notícias sobre a exploração de trabalhadores de suas fábricas localizadas em países asiáticos, como Vietnã e Indonésia (KLEIN, 2000). Por meio de manifestações e performances artísticas, os ativistas adotavam uma postura antiglobalização, desmentindo a imagem institucional de corporações transnacionais e apontando as contradições entre as mensagens transmitidas pela publicidade e as condições de produção dos itens vendidos (FONTENELLE, 2017). Imagens das sweatshops, traduzidas literalmente como “fábricas de suor”, escancaravam a exploração dos trabalhadores nos países subdesenvolvidos (SALMON, 2010).

Para solucionar essa crise de imagem global, que associava a Nike a histórias de sofrimento e exploração, a decisão tomada pela empresa parecia simples: em resposta às narrativas que confrontavam a imagem da marca, contariam histórias edificantes, capazes de reerguê-la. Para construir essas narrativas, a Nike recorreu aos serviços de especialistas em storytelling:

Em agosto de 1999, Amanda Tucker, diretora do programa de combate ao trabalho infantil da Organização Internacional do trabalho, foi recrutada pela Nike. Na mesma época, a Nike encomendou um relatório a acadêmicos norte-americanos. Um deles, David M. Boje, um pioneiro do storytelling organizacional, havia participado nos anos noventa das campanhas anti-Nike e realizado com seus alunos um trabalho teórico de desconstrução da marca (SALMON, 2010, p. 52, tradução da autora) 

Considerado por Salmon (2010) um dos pesquisadores mais influentes na gestão de crise da Nike, podemos dizer que David M. Boje contribuiu significativamente com o storytelling aplicado à gestão de marcas. De acordo com seus estudos, as empresas constituem organizações narrativas nas quais circulam múltiplas histórias, em constante diálogo, que se opõem ou se complementam. Essa ideia, desenvolvida a partir de autores como Roland Barthes, Guy Débord e Mikhail Bakhtin, levou o autor a elaborar o paradigma de uma nova organização pós-moderna, em constante mudança (SALMON, 2010).

Em “Storytelling Organizational Practices” (2014), David M. Boje expõe sua teoria aplicada à comunicação organizacional, na qual classifica as narrativas em três tipos: histórias estruturadas com começo, meio e fim, ou BME (beginning-middle-ending), histórias de vida (living stories) e antenarrativas. Para o autor, o uso do storytelling nas organizações envolve compreender a construção de sentido que acontece, de forma pragmática, entre storytellers e suas audiências.

Na classificação de Boje (2014), as histórias de vida são aquelas contadas pelos colaboradores no dia a dia, a fim de compartilhar experiências. A narrativa BME, por sua vez, possui uma forma estruturada, um enredo. Já o conceito de antenarrativa foi elaborado por Boje (2014), a fim de descrever as relações entre diferentes tipos de narrativas e histórias de vida: o “ante” contém os sentidos de “antes” e de “aposta” (BOJE, 2014, p. 10). Assim, antenarrativas seriam apostas do storytelling no futuro, antes que essas narrativas se estabeleçam de acordo com a estrutura das narrativas BME, ou com sua forma, estilo ou função. O duplo sentido do “ante” está no “antes” da narrativa adquirir coerência, e na “aposta” no futuro que está chegando, por isso os gêneros das antenarrativas são “in between”, sempre em movimento para conectar histórias de vida e narrativas BME (BOJE, 2014). 

Cabe ressaltar que os conceitos de Boje (2014) foram desenvolvidos dentro de estudos sobre o uso de narrativas por gestores e suas apostas no futuro das organizações, que mudam constantemente. Mas sua teoria também parece adquirir um caráter mais geral, valendo-se até de associações com a física quântica: 

Não existe apenas um futuro; múltiplos são possíveis, até o momento em que, como dizem na física quântica, algo colapsa as ondas de potencialidade para outra direção. Antenarrativas, essas apostas no futuro, colapsam as possibilidades para algumas realidades (BOJE, 2014, p. 10, tradução da autora).

Christian Salmon (2010) interpreta o storytelling management como uma forma de controlar a produção e a circulação de histórias dentro das organizações, buscando orientar a produção de relatos por meio de formas sistematizadas de comunicação interna. Esse controle só teria se tornado possível devido a uma tomada de consciência, ocorrida durante a virada narrativa, de que as empresas seriam “microcosmos” no qual se produzem e circulam inúmeras histórias, independentemente do nível hierárquico dos colaboradores (SALMON, 2010).

De forma semelhante ao que explicam os teóricos de gestão organizacional, explica Salmon (2010), a adoção do storytelling pelo marketing vai além de uma recolocação das marcas no mercado e passa a incluir uma visão de mundo que é projetada em toda a sociedade:

O objetivo do marketing narrativo já não é simplesmente convencer o consumidor a comprar um produto, mas provocar sua imersão em um universo narrativo, inseri-lo em um universo acreditável. Já não se trata de estimular a demanda, mas de oferecer uma história de vida que propõe modelos de conduta integrados que incluem certos atos de compra, através de verdadeiras engrenagens narrativas (SALMON, 2010, p. 63, tradução da autora). 

A possibilidade de incluir o consumidor em uma narrativa persuasiva, na qual ele desempenha o papel principal, para que uma organização alcance determinado fim, é o que atrai o mercado em direção ao storytelling. Não estamos mais falando das narrativas ocidentais que, segundo Aristóteles (2004), devem ter início, meio e fim, formando uma unidade com enredo linear, para provocar uma catarse. Nem dos mitos que, de acordo com Mircea Eliade (1972), não só explicam o mundo e moldam o comportamento das pessoas envolvidas por eles nas mais diversas sociedades, mas transformam a realidade do homem arcaico: 

Conhecer os mitos é aprender o segredo da origem das coisas. Em outros termos, aprende-se não somente como as coisas vieram à existência, mas também onde encontrá-las e como fazer com que reapareçam quando desaparecem (ELIADE, 1972, p. 18). 

Pelo olhar de Salmon (2010), parece que o storytelling, à semelhança dos mitos, possui o poder mágico de interferir na realidade de quem conta ou escuta suas histórias. Porém, se os mitos eram acusados pelos racionalistas gregos de serem ficção porque não representavam os valores ideais de seus deuses, o storytelling mercadológico perpetua valores que tampouco servem a “deuses”, mas aos objetivos das organizações que o utilizam, buscando cada vez mais eficiência na conquista dos consumidores. A seguir veremos um exemplo de padrão narrativo popular que, tendo o cinema como laboratório, estabeleceu sua própria forma diante do público, quase que espontaneamente. 

O storytelling no mercado

Em uma história, as pessoas devem sempre saber quem é o herói, o que ele quer, quem necessita derrotar para conseguir o que quer, o que de trágico acontecerá se o herói não ganhar e o que acontecerá de maravilhoso se tudo der certo. Se o público não puder responder a essas perguntas básicas, o filme vai perder milhões na bilheteria. E se um roteirista romper essas regras provavelmente nunca mais arranjará trabalho (MILLER, 2019, p. 11)

O trecho acima, retirado do livro “Storybrand” (2019), um manual para construir narrativas elaborado por Donald Miller a partir da Jornada do Herói, sugere o quanto o estudo das narrativas impactou o cinema comercial nas últimas décadas. Também no universo empresarial, saber contar histórias se tornou um diferencial tanto para a comunicação interna das organizações quanto para estratégias de marketing.

O método para estruturar narrativas proposto por Miller (2019), que ele chama de método SB7, reduz uma trama a sete pontos básicos e serve como exemplo de como a Jornada do Herói se consolidou enquanto fórmula predominante no mercado. Empresas a utilizam para envolver os consumidores com suas histórias, a fim de impulsionar a venda de seus produtos e o reconhecimento da marca. Mas há uma diferença fundamental entre a proposta original e a mercadológica: enquanto a Jornada do Herói se refere ao processo de individuação, por meio do confronto entre o herói e sua sombra, aplicar o modelo a um negócio traz foco para o problema que os produtos ou serviços se propõem a solucionar. Nesta narrativa publicitária, quem assume o papel de herói é o cliente em potencial. Miller (2019) convence o leitor de que não há como fugir dessa fórmula:

Quase todas as histórias que você vê ou ouve são assim: um PERSONAGEM que deseja alguma coisa encontra um PROBLEMA antes que a possa obter. No auge do seu desespero, um GUIA entra em sua vida, lhe dá um PLANO e O CONVIDA A AGIR. Tal ação o ajuda a não FRACASSAR e termina em um SUCESSO. (MILLER, 2019, p. 20)

Narrativas assim são encontradas com frequência no cinema comercial, produzido em Hollywood. Como vimos no primeiro capítulo, Christopher Vogler (2015) lançou nos anos 1990 um manual de roteiros que sintetiza a Jornada do Herói de Joseph Campbell (2007), repercutindo que ela se trata de uma estrutura universal encontrada em mitologias ao redor do mundo, o que contribuiu para a popularização do monomito. Em “A jornada do escritor”, Vogler (2015) explica conceitos como arquétipos através das funções (PROPP, 2006) desempenhadas pelos personagens, dando uma ênfase formal e estrutural que, também presente nos estudos já citados ao longo desta dissertação, facilita a incorporação dos conceitos junguianos a produções audiovisuais. Essas técnicas servem ao propósito de alcançar o maior público possível:

A análise estrutural nos mostra que se pode reduzir os mitos a estruturas matemáticas. Ora, toda estrutura constante pode se conciliar com a norma industrial. A indústria cultural persegue a demonstração à sua maneira, padronizando os grandes temas romanescos, fazendo clichês dos arquétipos em estereótipos. (MORIN, 1990, p. 26, apud CONTRERA, 1996, p. 74).

Como vimos no primeiro capítulo, os avanços na investigação estruturalista foram possíveis devido à análise dos mitos primitivos realizada por Lévi-Strauss, proporcionando uma abordagem capaz de reconhecer que os signos, em si, não possuem um sentido inato, mas o adquirem a partir de sua função dentro da estrutura; no caso, a cultura a que pertencem. Quando aplicada à literatura, a interpretação estruturalista consiste em procurar uma ordem ou inteligibilidade diante dos padrões do texto, a fim de “isolar os padrões significativos de signos a partir dos quais poderá chegar a conclusões sobre o significado e a cultura que estão sendo transmitidos e pesquisados" (BONNICI, 2009, p. 132). 

No entanto, ao priorizar o domínio da estrutura, analisando-a a partir de uma lógica “matemática”, a abordagem cientificista do Estruturalismo literário tende a negar avaliações, o que se manifesta na atitude de não opinar se uma obra seria boa, ruim ou indiferente. Nas palavras de Terry Eagleton (2003), devido a essa evasão dos juízos de valor, “o Estruturalismo se deixava levar pela teoria alienada da prática científica, fortemente predominante na sociedade capitalista mais recente” (EAGLETON, 2003, p. 168). Podemos constatar essa suposta neutralidade nos manuais que ensinam fórmulas estratégicas com base em estruturas narrativas, atendendo uma demanda de mercado, sem refletir sobre os efeitos de suas práticas.  

Ainda assim, não alcançamos as origens da popularização do storytelling no meio publicitário. Nem mesmo os estudos desenvolvidos pelos narratologistas parecem guardar relação direta com a popularização do termo “narrativa” no mercado, ou com sua expansão para outras áreas. Peter Brooks, um reconhecido professor norte-americano de Literatura Comparada, declarava em 2001: “O trabalho desenvolvido pela narratologia não invadiu outras disciplinas – nem o discurso público” (BROOKS, 2001, tradução da autora). Diante disso, não podemos afirmar que o storytelling se popularizou após as publicações dos principais expoentes da Narratologia, nem que o seu uso comercial foi influenciado por estes autores. 

Sabemos que o Estruturalismo levou várias disciplinas, inclusive a Teoria Literária, a adquirirem bases mais sólidas. Devido às suas contribuições, o estudo das “obras literárias” passou a abranger o “sistema literário”, ou seja, a Literatura enquanto sistema de códigos, gêneros e convenções pelos quais as obras literárias são identificadas e sistematizadas (EAGLETON, 2003, p. 169). E sem essa sistematização, talvez não fosse possível desenvolver novos métodos de storytelling a fim de criar uma “narrativa com propósito” (MCSILL, 2015, p. 39).

De acordo com Christian Salmon (2010), o ato de contar histórias começou a ganhar força no início nos anos 1990, quando o storytelling management passou a ser incorporado nas organizações, incentivando o uso de narrativas compartilhadas para mobilizar os colaboradores. No entanto, o auge de seus métodos e técnicas veio com a necessidade de grandes marcas, como a Nike, combaterem denúncias feitas por ativistas do movimento antimarcas (SALMON, 2010), no final da década de 1990. Dessa forma, o storytelling definido como métodos e estratégias utilizados para alcançar fins mercadológicos teve seu marco no contexto do movimento antimarcas (SALMON, 2010), que deu origem a um novo consumidor, mais exigente e difícil de ser conquistado pelas estratégias de marketing tradicional (FONTENELLE, 2017).

Para nos aprofundar em nosso objeto, que são os filmes publicitários do Greenpeace, contextualizaremos a presença de estruturas narrativas na publicidade e no cinema com um breve levantamento histórico da popularização do storytelling


Fundamentos da narrativa ocidental

Se nos atermos às narrativas ocidentais que envolvem ação, há o consenso de que o primeiro pensador a analisá-las minuciosamente foi Aristóteles. As suas reflexões foram fundamentais para estabelecer princípios narrativos que continuam presentes não só no teatro, como no cinema comercial e, consequentemente, no filme publicitário, gênero situado na intersecção entre a publicidade e o cinema.

Composta no século IV a. C., a Poética de Aristóteles (2004) foi a primeira grande teorização sobre as realizações da poesia. Seus escritos são considerados basilares para os estudos de teoria literária, sendo um marco importante para a arte narrativa, como demonstra Robert McKee em “Story” (2006), célebre manual de escrita de roteiros para cinema: “Em vinte e três séculos desde que Aristóteles escreveu Poética, os 'segredos' da estória viraram tão públicos quanto a biblioteca do outro lado da rua.” (MCKEE, 2006, p. 19).

De acordo com Aristóteles, mimesis – ou “imitação” – é o conceito principal no qual a atividade poética se baseia. Mimesis se refere àquilo que imita outras coisas, reproduzindo-as por arte ou experiência, através de cores, figuras, voz, ritmo, palavras e harmonia, separadamente ou combinadas. Ao conceber a poesia como a arte que imita apenas por palavras, em prosa ou em verso, Aristóteles (2004) se refere ao cognato do verbo poiein, que significa “fazer, fabricar, construir”; portanto, poeta seria aquele que fabrica, que faz, um texto ou um objeto.

A poesia é vista por Aristóteles como dotada de um caráter mais elevado do que a História, porque enquanto a primeira expressa o universal, a segunda expressa o particular: a História relata o que aconteceu, e a Poética, o que poderia acontecer. De forma semelhante, a poética possui em si dois aspectos: o seu verdadeiro âmbito, seja narração (epopeia) ou ação (tragédia), e o seu verdadeiro significado, enquanto correspondência ou retrato dos universais. O primeiro seria “o que aconteceu”, e o segundo, “o que poderia acontecer”.

Na tragédia grega, a poética serve-se da ação e, por meio da compaixão (eleos) e do temor (phobos), provoca a purificação (katharsis) de tais paixões. Seis partes a constituem: enredo (mythos), caracteres (eles), elocução (lexis), pensamento (dianoia), espetáculo (opsis) e música (melopoiia). Cabe ressaltar que mythos, equivalente a enredo, é destacado por Aristóteles como o princípio e a alma da tragédia, portanto o filósofo foi o primeiro a reconhecer que a estruturação dos acontecimentos seria o seu elemento mais importante.

Para Aristóteles, “o poeta deve ser um construtor de enredos mais do que de versos, uma vez que é poeta devido à imitação e imita ações” (ARISTÓTELES, 2004, p. 55). Ainda sobre o enredo (mythos), destaca que, por ser a tragédia a imitação de uma ação completa que formaria um todo, ele deve possuir uma extensão bem definida, contendo princípio, meio e fim. Enredos bem-estruturados não devem começar nem acabar ao acaso, por isso Aristóteles (2004) observa:

o enredo, como imitação que é de uma ação, deve ser a imitação de uma ação una, que seja um todo, e que as partes dos acontecimentos se estruturem de tal modo que, ao deslocar-se ou suprimir-se uma parte, o todo fique alterado e desordenado. Realmente aquilo cuja presença ou ausência passa despercebida não é parte de um todo (ARISTÓTELES, 2004, p. 53)

O fato de as tragédias possuírem início, meio e fim – ou seja, unidade da ação – é outro aspecto que as diferencia das narrativas históricas. Além disso, tragédias se caracterizam por provocar reações nas pessoas, como mobilização e exaltação. Uma tragédia bem-sucedida leva as pessoas a passarem por uma espécie de “purificação”, correspondente à palavra grega katharsis, cuja natureza e efeitos psicológicos são decorrentes da experiência emocional que assistiram. Essa purificação ocorre pelo despertar de duas emoções: phobos, que significa aflição ou perturbação decorrente de se imaginar sofrendo uma desgraça destrutiva ou dolorosa, devido a acontecimentos próximos e imediatos; e eleos, que corresponde à compaixão por aqueles que são dignos de pena, atingidos pela desgraça sem o merecer (ARISTÓTELES, 2004).

Para despertar esses sentimentos, a imitação deve conter em sua ação completa alguns fatos que inspiram temor e compaixão e que são suscitados com maior facilidade quando provocam uma quebra de expectativa, porém mantendo uma relação de causalidade entre si. Essa dinâmica deve fazer parte da estrutura da tragédia, comparada por Aristóteles a um nó seguido por um desenlace:

Toda a tragédia tem um nó e um desenlace: os fatos exteriores à ação e alguns dos que constituem essa ação formam, muitas vezes, o nó, e o resto é o desenlace. Entendo por nó o que vai desde o princípio até o momento imediatamente antes da mudança para a felicidade ou para a infelicidade e por desenlace o que vai desde o início desta mudança até o fim (ARISTÓTELES, 2004, p. 74)

Outro conceito importante presente nas tragédias é o de hamartia, que corresponde a um erro cometido sem querer. Seja por um erro de cálculo ou acidente, esses erros são cometidos por pessoas que não se distinguem nem pela sua virtude nem pela justiça, e que caem no infortúnio não por maldade ou perversidade; ou seja, pessoas comuns. Na tragédia ideal de Aristóteles, a hamartia seria uma forma de ignorância que desencadeia consequências desastrosas, mas não subverte a integridade moral do herói trágico.

O segundo elemento mais importante da tragédia, logo após a estruturação dos acontecimentos, são os caracteres ou personagens. Aristóteles ressalta que eles estão sempre sujeitos ao enredo, porque os homens “não atuam para imitar os caracteres mas os caracteres é que são abrangidos pelas ações. Assim, os acontecimentos e o enredo são o objetivo da tragédia e o objetivo é o mais importante de tudo” (ARISTÓTELES, 2004, p. 49).

Em terceiro lugar vem o pensamento, que deve ser capaz de exprimir o que é possível e apropriado por meio da palavra, e em quarto lugar a elocução, que se diferencia do pensamento por ser a comunicação dele por meio de palavras, porém dotada de estilo, em verso ou em prosa. A elocução deve ser clara, mas sem ser banal, pois fica vulgar se forem usadas palavras muito comuns. Por outro lado, se usarem muitas palavras raras, como metáforas ou expressões estrangeiras, ela pode resultar em enigma ou “barbarismo”. Assim, Aristóteles recomenda misturar palavras comuns e raras de forma moderada (ARISTÓTELES, 2004).

Interessante ressaltar a definição aristotélica de metáfora, que hoje consideraríamos abranger sinédoque e metonímia: para o filósofo, “metáfora é a transferência de uma palavra que pertence a outra coisa, ou do gênero para a espécie ou da espécie para o gênero ou de uma espécie para a outra ou por analogia” (ARISTÓTELES, 2004, p. 83). A habilidade de construir boas metáforas seria indispensável para um bom poeta, devido à própria natureza da poética enquanto mimesis. “De fato, esta é a única coisa que não se tira de outrem e é sinal de talento, porque construir bem uma metáfora é o mesmo que percepcionar as semelhanças” (ARISTÓTELES, 2004, p. 90).

Ao refletir sobre as origens da imitação, Aristóteles afirma que ela é natural aos seres humanos desde quando são crianças, e que o fato de possuírem maior capacidade para imitar, adquirindo assim seus primeiros conhecimentos, os diferencia dos outros animais. Ou seja, além das pessoas se entreterem com as imitações, assisti-las leva a aprendizados e deduções sobre o que as ações estão representando.

Seja reconhecendo a função das narrativas para a transmissão de experiências, seja hierarquizando os elementos mais importantes da tragédia, as observações que provêm do legado deixado por Aristóteles (2004) ampliam as possibilidades de analisarmos a estrutura narrativa dos filmes publicitários.

Intersecções entre mito e publicidade

Ao longo da tese “Linguagem e Mito no Filme Publicitário”, Camargo (2011) demonstra que o mito e o filme publicitário operam sobre as mesmas estruturas e sistemas de significação. As principais intersecções entre o texto mítico e o texto publicitário são apresentadas como: uma narrativa fantástica com base em imagens, lugares, situações e personagens impressionantes; a supressão do tempo histórico; as marcas do ritual; a totalidade representada pela junção ou complementaridade entre homem e natureza; e a ressignificação permanente do imaginário coletivo (CAMARGO, 2011, p. 14). No corpus de sua pesquisa, o autor observa o uso de recursos como a animização e a antropomorfização de produtos e elementos da natureza, bem como a criação ou recriação de simbologias. Camargo (2011) compreende que a manifestação do mito no filme publicitário “alimenta a busca incessante pela completude, o eterno retorno às origens existenciais do homem” (CAMARGO, 2011, p. 12).  

Essas referências míticas, quando empregadas em produções audiovisuais impactantes, podem ter grande influência na decisão de compra dos consumidores. É o que afirmam as autoras do livro “O Herói e o Fora-da-lei” (MARK; PEARSON, 2021), que instrui profissionais de marketing a interpretarem identidades de marcas a partir de padrões presentes no imaginário coletivo: 

O impacto do marketing de marca, especialmente a propaganda, é incomensurável. Em grande medida, a atenção determina a história. Ou seja, aquilo que focalizamos e pelo qual sentimos ressonância vem reforçar padrões de consciência que, por sua vez, direcionam a ação. A publicidade da tevê captura a atenção por causa de todo o talento, energia e inteligência que entram nos comerciais para que eles sejam mais atraentes do que os programas em cujos intervalos são veiculados. (MARK, PEARSON, 2021, p. 359)

Se esses padrões de consciência podem levar o público a estabelecer vínculos com as marcas em um nível inconsciente, incorporar textos míticos a campanhas e situações publicitárias exige maior responsabilidade ética da parte de seus produtores. No artigo “Publicidade e Mito”, Malena Contrera ressalta, por meio de uma análise de como a mitologia opera em conjunto com a publicidade, que o processo comunicativo é complexo, rico e contém motivações profundas que, mesmo quando não são visíveis, operam através das técnicas e peças publicitárias (CONTRERA, 2002). 

Contrera (2002) afirma que o poder do universo mítico se torna mais eficiente à medida que opera de forma inconsciente. A questão ética levantada pela autora é se os criadores das peças publicitárias têm consciência de lidar com registros tão poderosos ao usá-los para influenciar a formação de valores e hábitos de consumo. Esses registros são os arquétipos, um conceito desenvolvido pela Psicologia Profunda cuja origem vem do grego archetypon, equivalente a modelo de seres criados, padrão exemplar, protótipo (CONTRERA, 2002).

É possível que, por se tratar de conteúdos tão arraigados na cultura, nem mesmo as equipes de criação publicitária estejam conscientes do uso de referências mitológicas, o que reforça a importância de atentar para a responsabilidade de influenciar pessoas em nível inconsciente. As autoras de “O herói e o fora-da-lei” (2021) também alertam sobre o cuidado no uso desses padrões para se conectar aos clientes:

Pela primeira vez na história da humanidade, quebraram-se os mitos compartilhados e agora as mensagens comerciais tomam o lugar das histórias sagradas compartilhadas. Sabemos, no fundo do coração, que uma profissão voltada a vender produtos nunca preencherá esse vazio. Se pararmos para pensar em quantas pessoas estão encontrando no consumo o único significado que têm na vida, não nos sentimos orgulhosos; sentimo-nos tristes ou mesmo ultrajados. (MARK; PEARSON, 2021, p. 361)

No caso dos filmes publicitários do Greenpeace, o objetivo de suas mensagens não é vender um produto específico, mas engajar pessoas em torno da causa ambiental, persuadindo a audiência a apoiar campanhas promovidas pela organização ambientalista. Evidenciando o objetivo de aproximar audiência e natureza, há um arquétipo que se destaca nas produções audiovisuais: a Grande Mãe. Esse arquétipo (ou protótipo) é representado por uma Mãe Natureza, que sugere a restauração de uma sociedade na qual os seres humanos vivem em harmonia com os outros seres, como um ideal matriarcal¹. Citada na introdução a partir da deusa grega Gaia, essa imagem arquetípica voltará a ser abordada mais adiante e ganhará destaque na análise do vídeo “Eu sou a Amazônia” (2020). 

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¹ Uma utopia matriarcal também é associada ao ecofeminismo, que compartilha ideais, como a unidade das espécies e a unidade da matéria, com o ambientalismo e o pensamento ecológico (CASTELLS, 2018). De acordo com Ynestra King (1988), o ecofeminismo surge durante a segunda onda do feminismo e adota o conceito de patriarcado para definir não só a dominância dos homens na sociedade, como outras formas de exploração humanas, considerando que a causa da exploração das mulheres estaria ligada à sua suposta proximidade com a natureza. No lugar de tentar se tornar parte da cultura masculina, as ecofeministas celebram a identificação com a natureza, por meio das artes e da formação de grupos e comunidades. Sob influência desse feminismo cultural, ao longo dos anos 1980 se desenvolveu com maior força um “movimento da espiritualidade feminista” (KING, 1988, p. 136) baseado no respeito à diversidade e unidade de todas as coisas vivas.


Sobre mitos, símbolos e arquétipos

Antes de investigarmos como os filmes publicitários do Greenpeace fazem uso estratégico do storytelling, é importante ressaltarmos algumas particularidades sobre o objeto de pesquisa. Uma característica dos filmes publicitários é que, apesar de circularem amplamente por meio da internet, sua linguagem própria foi desenvolvida a partir do ponto de contato entre televisão e publicidade. E, por ocuparem há décadas uma posição de destaque na cultura midiática, eles constituem um gênero discursivo que dialoga com outros sistemas, como o social, o artístico, o psíquico e o mítico (CAMARGO, 2011). 

Em “Mito e filme publicitário: estruturas de significação”, Hertz Wendell de Camargo (2011) define filme publicitário como um enunciado que serve para narrar uma história em poucos segundos, e assim construir nossa percepção sobre um produto, marca, serviço, instituição ou candidato, “tudo sob a política (códigos) de uma linguagem publicitária dentro de outra linguagem, a televisual, escondendo, na verdade, uma estratégia de mercado” (CAMARGO, 2011, p. 9).

De acordo com o autor, a publicidade, enquanto texto que reflete a cultura, também é capaz de agregá-la com novos sentidos. Os filmes publicitários, com sua natureza textual-imaginativa, são “reais à medida em que são territorialistas, querem se embrenhar na mente e na alma, com mais ou menos consentimento do espectador, para sobreviverem entre nossas memórias, nutrindo e se nutrindo do imaginário” (CAMARGO, 2011, p. 11). Talvez por isso, a presença de referências míticas nas narrativas audiovisuais pode passar despercebida não só pela audiência, mas pela própria equipe de criação. 

É essencial reconhecer que, quando se trata do uso de recursos narrativos conhecidos como storytelling, as referências míticas podem surgir tanto de forma inconsciente durante o processo criativo, quanto podem fazer parte da estratégia de comunicação. A fim de analisarmos tais referências nos filmes publicitários do Greenpeace, introduziremos alguns conceitos-chave para a presente pesquisa, tomando como base estudos desenvolvidos no âmbito da Semiótica da Cultura, que possibilita o diálogo entre diferentes campos como Antropologia, Psicologia Profunda e Teoria Literária.

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