"A vida faz mais do que se adaptar à Terra; ela a modifica. A evolução é uma dança bem engendrada na qual a vida e o ambiente material formam um par. Dessa dança emerge a entidade Gaia." (James Lovelock)

A Jornada do Herói

Dito de forma simples, Joseph Campbell considera que a mitologia e os ritos servem principalmente para fornecer os símbolos que levam a humanidade a avançar, em um movimento que se opõe ao de outras fantasias humanas, que poderiam levar os indivíduos a uma regressão (CAMPBELL, 2013). Ao longo de uma jornada mítica que se divide em três fases – a partida, a iniciação e o retorno –, cabe ao herói demonstrar a força do ego-consciência contra as forças do inconsciente, a fim de combater suas sombras e integrá-las, realizando uma síntese dos opostos. 

O que nos interessa nesta pesquisa é, sobretudo, entender como essa estrutura mítica influencia os métodos de storytelling audiovisual, em particular os filmes publicitários. Por isso ela será abordada a partir de Christopher Vogler, autor de “A jornada do escritor" (2015), um manual direcionado a contadores de histórias e roteiristas, que tornou mais acessível a aplicação dos conceitos da Jornada do Herói a produções audiovisuais. 

Ao concordar com a ideia do monomito, Vogler (2015) defende a existência de um padrão universal de narrativa, afirmando que “todas as histórias consistem em poucos elementos estruturais comuns” (VOGLER, 2015, p. 31). Apesar de infinitamente variável, esse padrão apresentaria constância na sua forma básica, fazendo uso de determinados pontos de referência ou fontes de inspiração, e tendo entre seus princípios de planejamento os arquétipos, que refletem diferentes aspectos da mente humana. 

O esquema da Jornada do Herói adaptado por Vogler (2015) para criar roteiros é semelhante ao de Campbell (2013), porém as 17 etapas do esquema original¹ foram reduzidas a 12 etapas. Estas seriam: mundo comum; chamado à aventura; recusa do chamado; mentor; travessia do primeiro limiar; provas, aliados e inimigos; aproximação da caverna secreta; a provação; recompensa (empunhando a espada); o caminho de volta; ressurreição; e retorno com o elixir. Além disso, Vogler (2015) enfatiza a existência de quatro pontos de virada, ou clímaces, que alteram a direção da jornada ao estabelecerem novos objetivos para o herói. Esses clímaces estariam situados na travessia do primeiro limiar (marcando o primeiro ato), na provação (marcando o fim da primeira parte do segundo ato), no caminho de volta (no fim da segunda parte do segundo ato), e no final da história (clímax do terceiro ato e de toda a história). 

A história contada a partir de Vogler (2015) tem início quando o herói é levado a um mundo especial, novo e estranho, diferente do seu mundo comum, e logo é apresentado a um desafio que o retira da sua zona de conforto. Esse chamado mostra o que está em jogo, levantando uma questão, às vezes incômoda, que desperta curiosidade, porém, o herói sente medo e hesita. Ele pensa em desistir porque ainda não está comprometido com a Jornada. Então surge outro personagem, geralmente um Velho ou Velha Sábia, para encorajar o herói a enfrentar o desconhecido, oferecendo conselhos, orientação ou instrumentos para que atravesse o primeiro limiar. De acordo com Vogler (2015), é importante que esse mentor só o acompanhe até certo ponto da jornada, pois o herói deve enfrentar o desconhecido sozinho. 

Quando o herói aceita enfrentar as consequências de lidar com o desafio do chamado, significa que ele está comprometido com a aventura. Encontra novos desafios, passa a aprender as regras do mundo especial e obtém informações importantes, de modo que o seu caráter se desenvolve enquanto reage à pressão das provas e dos testes. Ao se aproximar da “caverna secreta”, o herói cruza o segundo limiar principal, chegando ao local em que o objeto da missão está escondido. É o momento de se preparar para adentrar a caverna e lutar contra um perigo supremo. 

A provação do herói consiste em confrontar o seu maior medo, enfrentando a possibilidade de morte ao lutar contra forças hostis. É o momento crucial da história, principal fonte do mito heroico, porque nele o público experimenta maior suspense e tensão, sem saber se o personagem vai sobreviver. Quando o herói celebra a sua vitória, toma posse de sua recompensa, que, em alguns casos, também é o momento de reconciliação com a anima. 

O que acontece com o herói acontece também conosco. Somos incentivados a vivenciar o instante à beira da morte com ele. Nossas emoções são temporariamente oprimidas para que elas possam ser revividas quando o herói voltar da morte. O resultado dessa ressurreição é, para nós, a sensação de alegria e euforia. (VOGLER, 2015, p. 54). 

Segundo Vogler (2015), a maioria dos filmes de Hollywood está dividido nesses três atos, que podem ser resumidos como: a decisão do herói de agir, a ação em si e as consequências da ação (VOGLER, 2015). Outros autores que adaptaram a Jornada do Herói, como Donald Miller (2019), que a aplica na publicidade, elaboraram métodos próprios para reproduzir essa mesma forma. Para esta pesquisa, é importante esclarecer que os filmes publicitários, devido à sua duração bastante reduzida, não possuem tantos personagens nem desenvolvem todas as etapas da Jornada do Herói descrita por Vogler (2015) ou Campbell (2013). No entanto, veremos no segundo capítulo, a partir dos estudos formalistas de Kristin Thompson (1999), que um esquema semelhante em seus pontos de virada pode ser observado nas narrativas clássicas de Hollywood.

O que Vogler (2015) define como arquétipos, em sua adaptação da Jornada do Herói, são símbolos de experiências de vida universais, mas estão além das imagens arquetípicas que já descrevemos. Eles também são interpretados como funções temporárias que servem para alcançar determinados efeitos nas narrativas, ou como máscaras que os personagens usam para fazer a história avançar. De certa forma, podemos olhar para os arquétipos como facetas da personalidade do herói, que reúne e incorpora a energia e os traços desses personagens (VOGLER, 2015). 

Isso porque o herói representa o indivíduo, a identidade pessoal. Ele é aquele que se distingue dos outros, separando-se da sua família ou comunidade em busca de sua totalidade, e também aquele que sacrifica a si mesmo pelos outros, protegendo e servindo. 

Todos os vilões, pícaros, amantes, amigos e inimigos do Herói podem ser encontrados dentro de nós mesmos. A tarefa psicológica que enfrentamos é a de integrar essas partes separadas em uma entidade completa, equilibrada. O ego, o Herói que pensa estar separado de todas as suas partes, deve se incorporar a elas e tornar-se um ser único (VOGLER, 2015, p. 68)

Ao explorarmos a estrutura de códigos terciários vimos que, além de eles serem binários, caracterizam-se por sua polarização e assimetria. A partir dos conceitos trabalhados neste capítulo destacamos as oposições entre: luz e sombra; consciência e inconsciente; humanidade e natureza. A luz, a consciência e a humanidade estão situadas no mesmo polo, que costuma entrar em conflito com o polo oposto, geralmente ameaçador: sombra, inconsciente e natureza. Porém há uma oposição preponderante, presente em mitos e histórias das mais diversas culturas, que não pode ser esquecida: a oposição entre a vida e a morte. O caráter universal dela reside no fato de que, por ser a morte mais forte do que a vida, cabe à humanidade lutar pela sua sobrevivência (BYSTRINA, 1995). 

Compreender as relações estabelecidas entre os textos culturais, destacando a existência de tais oposições e conflitos, possibilitou a elaboração do método de análise dos filmes publicitários que explicamos no terceiro capítulo. Nele, expomos como a estrutura da quaternidade mítica (CANEVACCI, 1984), que está na base da Jornada do Herói, pode ser adaptada para convocar o herói à “aventura” de se conciliar com a natureza. 


¹ Em “O Herói de Mil Faces”, Joseph Campbell (2013) divide as 17 etapas em três fases: a partida, que envolve as etapas do chamado da aventura, da recusa do chamado, do auxílio sobrenatural, da passagem pelo primeiro limiar, e do ventre da baleia; a fase da iniciação, abrangendo o caminho das provas, o encontro com a deusa, a mulher como tentação, a sintonia com o pai, a apoteose e a benção última; e, por fim, a fase do retorno, com as etapas: a recusa do retorno, a fuga mágica, o resgate com auxílio externo, a passagem pelo limiar do retorno, senhor de dois mundos e liberdade para viver.

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