"A vida faz mais do que se adaptar à Terra; ela a modifica. A evolução é uma dança bem engendrada na qual a vida e o ambiente material formam um par. Dessa dança emerge a entidade Gaia." (James Lovelock)

Em busca da integração

De acordo com Malena Contrera (2000), os estudos da Mitologia Comparada demonstram que o mito traz um princípio criativo universal: encontrado em diversas culturas, representando-se em diferentes épocas, trata-se de uma forma de lidar com as limitações da realidade orgânica por meio de recursos imaginados. Psicologicamente simbólicos, os mitos não devem ser entendidos literalmente, mas como metáforas (CONTRERA, 2000). Assim como Camargo (2011) afirma que, no filme publicitário, a presença do mito aponta para algo “maior, vivo, inteiro” (CAMARGO, 2011, p. 11), buscamos analisar nos vídeos do Greenpeace como o storytelling evoca imagens do Grande Feminino para engajar a audiência em torno da causa ambiental. 

Por meio do arquétipo da Grande Mãe podemos estabelecer uma analogia entre o processo de aquisição da consciência e o processo de gestação, nascimento e crescimento de uma criança, como demonstra Neumann (2021): 

Essa libertação do escuro para o claro caracteriza o caminho da vida, bem como o caminho da consciência. Ambos os caminhos conduzem sempre, e basicamente, da noite para a luz. Este é um dos motivos para a conexão arquetípica entre o simbolismo do crescimento e a aquisição de consciência, enquanto a terra, a noite, a escuridão e o inconsciente são um conjunto em oposição à luz e à consciência. À medida que o Feminino liberta para a vida e para a luz o que nele está contido, torna-se a Grande Mãe e a Mãe Bondosa de toda a vida. (NEUMANN, 2021, p. 78)

Esse processo de aquisição de consciência também pode ser interpretado como análogo a diversas narrativas encontradas ao redor do mundo. Foi o estudo dos mitos nos quais está presente este simbolismo, tão ligado ao conflito entre luz e sombra abordado anteriormente, que levou o escritor Joseph Campbell a elaborar um modelo que, mais tarde, viria a se popularizar pelo nome de Jornada do Herói. No livro “O Herói de Mil Faces” (2013), publicado pela primeira vez em 1949, Joseph Campbell explora o herói de todos os mitos, um arquétipo que encontramos frequentemente, ainda hoje, nas histórias disseminadas pela cultura de massa, e que já foi adaptado por outros autores, como Maureen Murdock (1990) em sua Jornada da Heroína¹, sem, contudo, perder as características mais básicas do esquema original.

Ao partir da premissa de que é possível traçar paralelos entre as linguagens simbólicas de diferentes narrativas, o autor argumenta que, por meio de figuras religiosas e mitológicas, são reveladas “verdades básicas que têm servido de parâmetros para o homem, ao longo dos milênios de sua vida no planeta” (CAMPBELL, 2013, p. 12), e que, por meio de uma mesma estrutura presente em inúmeras histórias ao redor do mundo, a humanidade relata o confronto entre o ego e sua sombra. O autor toma como base uma extensa pesquisa que realizou sobre o monomito, termo cunhado pelo escritor James Joyce, para se referir a uma história arquetípica que emerge do inconsciente coletivo (CAMPBELL, 2008). Influenciado pelos estudos da Psicologia Analítica, Campbell ressalta a importância de explorar o significado dos mitos em um nível individual, como forma de autoconhecimento – ou, como ele diz, de descobrir o próprio destino. 

Por tomar como base a obra de Carl Jung, a Jornada do Herói aborda com frequência alguns conceitos da Psicologia Analítica, como os arquétipos. Entre as imagens arquetípicas mais presentes nas narrativas estão a anima, o velho sábio e a sombra, exploradas por Carl Jung em "Arquétipos e o Inconsciente Coletivo” (2008). A anima, da qual já falamos a partir de Neumann (2021), é definida por Jung (2008) ao mesmo tempo como o impulso caótico da vida e uma sabedoria oculta. É uma realidade psíquica que, ao reunir sabedoria e loucura, demonstra que “em todo caos há um cosmos, em toda desordem uma ordem secreta, em todo capricho uma lei permanente, uma vez que o que atua repousa no seu oposto” (JUNG, 2008, p. 41).  

Diferente da anima, que é o “arquétipo da vida”, o velho sábio é chamado por Jung de “arquétipo do significado ou do sentido” (JUNG, 2008, p. 42). É ele quem ilumina o caos com um significado profundo, lançando a luz do sentido, que nos leva a experimentar o pensamento “como uma atividade autônoma cujo objetivo somos nós mesmos” (JUNG, 2008, p. 46). Em uma história, por exemplo, ele pode ser representado pelo personagem que ajuda o herói com sua sabedoria, incentivando-o e indicando como agir corretamente ao longo da jornada.  

O velho sábio protege o herói durante sua aventura porque detém conhecimento sobre como enfrentar as crises do autodesenvolvimento. Estas, por sua vez, são despertadas por “forças psicológicas inconvenientes ou objeto de nossa resistência, que não pensamos em integrar — ou não nos atrevemos a fazê-lo — à nossa vida” (CAMPBELL, 2013, p. 19). Essas forças são o que Jung chamou de arquétipo da sombra, a representação do inconsciente, que desafia o indivíduo mostrando aspectos de sua personalidade que preferia não ver, advertindo-o de seu desamparo e impotência: “Não é possível anulá-la argumentando, ou torná-la inofensiva através da racionalização” (JUNG, 2008, p. 31). 

A partir dos estudos da Psicologia Analítica, Campbell (2008) afirma que o confronto é intrínseco à psique do indivíduo, pois toda personalidade possui dois lados que estão em constante interação, dinâmica na qual um lado sempre busca assimilar e integrar o outro lado. Este processo sintético de integração do inconsciente na consciência foi denominado por Jung de “processo de individuação” (JUNG, 2008, p. 49), e se tornou um conceito indispensável para Campbell (2013):

Os ousados e verdadeiramente marcantes escritos da psicanálise são indispensáveis ao estudo da mitologia. Isso ocorre porque, como quer que encaremos as interpretações detalhadas, e por vezes contraditórias, de casos e problemas específicos, Freud, Jung e seus seguidores demonstraram irrefutavelmente que a lógica, os heróis e os feitos do mito mantiveram-se vivos até a época moderna. Na ausência de uma efetiva mitologia geral, cada um de nós tem seu próprio panteão de sonho – privado, não reconhecido, rudimentar e, não obstante, secretamente vigoroso (CAMPBELL, 2013, p. 16) 

Carl Jung (2008) afirma que, diferente das sociedades orientais, nas quais “a cooperação ordenada dos opostos morais é uma verdade natural reconhecida” (JUNG, 2008, p. 45), na sociedade ocidental predomina um sentimento cristão que não suporta enxergar opostos como equivalentes funcionais, o que acaba por dificultar a libertação deles. O objetivo do monomito, conforme explica Campbell (2008), é justamente conquistar uma nova percepção a nível simbólico, servindo-se da analogia do herói que decide renunciar ao “mundo comum” para entrar na esfera da aventura, onde enfrenta diversos desafios, e só retorna para casa após aprender uma lição valiosa.

Numa palavra: a primeira tarefa do herói consiste em retirar-se da cena mundana dos efeitos secundários e iniciar uma jornada pelas regiões causais da psique, onde residem efetivamente as dificuldades, para torná-las claras, erradicá-las em favor de si mesmo (isto é, combater os demônios infantis da sua cultura local) e penetrar no domínio da experiência e da assimilação, diretas e sem distorções, daquilo que C. G. Jung denominou “imagens arquetípicas” (CAMPBELL, 2013, p. 27)

Os temas abordados pela jornada encontram correspondência nos mitos, na literatura, cinema ou qualquer outra forma artística, e na própria vida dos indivíduos, pois, de acordo com Campbell, os mitos que uma pessoa escuta constituem elementos com os quais é possível dar forma à sua vida (CAMPBELL, 2008). Porém, é necessário frisar que, como o próprio autor explica em “Mito e Transformação” (2008), a Jornada do Herói se baseia na experiência de indivíduos ocidentais: 

Ao contrário das culturas tradicionais, não tentamos incutir a tradição no indivíduo com tal força que ele se torne simplesmente uma cópia ambulante do que já existia antes de si. Em vez disso, a intenção é desenvolver a personalidade individual – um tipo de problema especial e contemporâneo no Ocidente, caso vocês não saibam (CAMPBELL, 2008, p. 41)

Campbell (2008) afirma que uma diferença fundamental entre a sociedade ocidental e as sociedades arcaicas reside nas funções desempenhadas pelos mitos. De acordo com sua perspectiva, o mito possui quatro funções: proporcionar a experiência de uma vida com significado, levando ao assombro diante do mistério da existência (deslumbramento); explicar todo o universo em torno do indivíduo, de um modo que conserve e induza esse efeito de assombro (função cosmológica); transmitir noções de lei e ordem, a exemplo da capacidade de discernir o que é certo e o que é errado (função sociológica); e ajudar o indivíduo a passar por cada etapa de sua vida (função psicológica). 

As funções cosmológica e sociológica não constituiriam um problema para os mitos resolverem na sociedade ocidental, porque já estão nas mãos de ordens seculares, como a ciência (cosmológica) e o Estado (sociológica). Por outro lado, as funções de deslumbramento (ou assombro) e a psicológica ainda desempenhariam um papel muito importante, e o autor até sugere que esta última seja a função encontrada com maior constância em todas as culturas. Mas Campbell (2008) também sugere a existência de uma diferença fundamental entre a atitude tradicional e a atitude ocidental contemporânea para lidar com o problema do amadurecimento: nas sociedades tradicionais, o adulto deve assumir as leis da sociedade e obedecê-las; na segunda, espera-se que o indivíduo desenvolva faculdades críticas para avaliar a si mesmo e a ordem social, para então contribuir com a elaboração desta. 

>>>

¹ Elaborada por Maureen Murdock (1990), a Jornada da Heroína é um modelo narrativo inspirado no modelo da Jornada do Herói, mas que utiliza uma linguagem voltada para mulheres na descrição das etapas, a fim de reunir as mulheres à sua natureza feminina. Parte-se da percepção de que os sistemas patriarcais, validados pela sociedade masculina, voltada para o progresso, são destrutivos para a psique humana e para o equilíbrio ecológico da Terra. Ao acolher a própria natureza feminina, buscando novos mitos e heroínas, mulheres podem transformar as estruturas sociais, econômicas e políticas, além de integrar a própria personalidade (MURDOCK, 1990).

Nenhum comentário: