"A vida faz mais do que se adaptar à Terra; ela a modifica. A evolução é uma dança bem engendrada na qual a vida e o ambiente material formam um par. Dessa dança emerge a entidade Gaia." (James Lovelock)

A natureza através da cultura

Uma das formas de definirmos cultura é através da Antropologia, disciplina que busca observar as diferenças existentes entre as sociedades e o significado destas diferenças. O olhar antropológico, de acordo com Philippe Descola (2016), investiga as soluções encontradas por cada sociedade para o problema da existência comum. Por sua vez, a Semiótica da Cultura se dedica ao problema do relacionamento entre natureza e cultura, a fim de refletir sobre suas implicações no processo de semiose em diferentes esferas comunicacionais (MACHADO, 2003), o que reforça a importância de sintetizar tais conceitos.

De modo geral, estamos acostumados a compreender natureza como tudo que é produzido sem a ação humana e que está em oposição à cultura, vista como aquilo que é produzido pela ação humana, ou seja, produto de uma atividade técnica. Philippe Descola vai mais além, apontando uma diferença básica entre humanos e não humanos: “os humanos são sujeitos que possuem direitos por conta de sua condição de homens, ao passo que os não humanos são objetos naturais ou artificiais que não têm direitos por si mesmos” (DESCOLA, 2016, p. 9).

Confrontar essa visão característica da sociedade ocidental, que coloca os humanos como sujeitos e os não-humanos como objetos, tem sido um caminho trilhado não só por ambientalistas, mas também por antropólogos como Philippe Descola e Bruno Latour¹. Adotar uma perspectiva que integre natureza e cultura, ou que ao menos questione a lógica sujeito-objeto, ainda sofre resistência – a exemplo da hipótese de Gaia, citada na introdução –, e constitui uma das características do movimento ambientalista (CASTELLS, 2018). Em um momento de crise ambiental, contestar a lógica predominante na sociedade ocidental se tornaria ainda mais urgente, pois como explica Descola: 

ao manter relações de cumplicidade e de interdependência com os habitantes não humanos do mundo, diversas civilizações que por muito tempo chamamos de ‘primitivas’ (o termo não é muito correto) souberam evitar essa pilhagem inconsequente do planeta a que os ocidentais se entregaram a partir do século XIX (DESCOLA, 2016, p. 25).

De acordo com os semioticistas da cultura, o conceito de cultura está sempre associado à capacidade de simbolização dos seres humanos, mas deve ser compreendido em diálogo com as condições biológicas. Enquanto campo investigativo, a Semiótica da Cultura é radicalmente promissora por indicar que os processos comunicativos ocorrem onde quer que haja signos reivindicando entendimento (MACHADO, 2003). Diferente da cultura, a linguagem não é uma habilidade exclusiva dos seres humanos, e sim o elo que une os diferentes domínios da vida no planeta: 

Se linguagem ocorre em escalas que estão além do processo de interação social, isto é, que abarcam o bio, o cosmos, o semion, não há como fechar a cultura no socius. Entender a interação entre natureza e cultura é, de fato, o grande problema para a abordagem semiótica da cultura de extração russa (MACHADO, 2003, p. 25) 

Um dos fundadores da Escola de Tartú-Moscou, Iúri Lotman, cunhou o termo semiosfera para definir um mesmo espaço cultural habitado por signos. Assim, podemos dizer que a natureza, a cultura e a não-cultura pertencem a uma mesma semiosfera. A cultura, entretanto, distingue-se por possuir o caráter de estrutura, porque é a vida cultural o que permite à humanidade se estruturar, criando uma sociosfera que torna possível a vida social, de maneira semelhante à biosfera que torna possível a vida orgânica (CAMARGO, 2011).

Tudo o que está além da esfera cultural, pois não é aceito enquanto cultura, passa a ser considerado não-cultura. E, da mesma forma que a não-cultura só pode ser definida em relação ao que é considerado cultura, a cultura depende de sua oposição à não-cultura para ser definida. Isso leva a oposição entre natureza e cultura a perder força, uma vez que os dois sistemas estão implicados: portanto, tudo o que é possível de ser estruturado pode ser incorporado ao que chamamos de cultura. Como afirma Camargo (2011), a cultura é um processo estritamente humano, no qual lidamos com diversas representações, em variados níveis de complexidade, para interpretar o mundo ao nosso redor e garantir nossa própria sobrevivência.

Na definição de Ivan Bystrina (1995), a cultura se caracteriza por ser um conjunto de atividades cujo objetivo vai além de preservar a sobrevivência material dos seres humanos; ou seja, cultura são todas as coisas aparentemente “supérfluas, inúteis”. Isso significa que a cultura existe para si mesma, ou que “a cultura é pela cultura”, ao menos em seu cerne, pois, segundo Bystrina, a cultura passa a servir para outras finalidades somente em suas margens, sua “periferia” (BYSTRINA, 1995, p. 5).

Podemos observar que, por muito tempo, o pensamento dos povos sem escrita, antes chamados de “primitivos”, foi considerado inferior. De acordo com o antropólogo estruturalista Claude Lévi-Strauss (2014), isso se deve ao fato de o pensamento moderno ter se acostumado a ver o pensamento dos povos sem escrita como determinado por representações místicas e emocionais. No entanto, por meio do estudo dos mitos, Lévi-Strauss argumenta que não só os povos que escrevem, mas também os que são vistos como “não-evoluídos” possuem formas de pensamento ao mesmo tempo desinteressado e intelectual. Ou seja, um pensamento que existe para si mesmo; a cultura pela cultura. Como veremos, o Estruturalismo e a Semiótica se destacam em meio a debates centrais para as Humanidades ao longo do século XX, e por isso guardam algumas semelhanças entre si. 

>>>

¹Bruno Latour é um dos autores da Teoria Ator-Rede (TAR), que rejeita a separação consolidada na prática científica entre sujeito e objeto, e questiona o pensamento filosófico-científico moderno e suas divisões fundamentais, como social/natural e humanos/não humanos. Philippe Descola é reconhecido pelo fato de sua obra contestar o dualismo que opõe natureza e cultura, ao mostrar que a própria natureza é uma produção social.

Nenhum comentário: