"A vida faz mais do que se adaptar à Terra; ela a modifica. A evolução é uma dança bem engendrada na qual a vida e o ambiente material formam um par. Dessa dança emerge a entidade Gaia." (James Lovelock)

No princípio era a linguística

O surgimento da linguística moderna foi um marco para as ciências humanas. Até o final do século XIX, os estudos linguísticos estavam divididos entre estudos sobre a história das línguas naturais (filologia), a fim de reconstruir o desenvolvimento das línguas europeias, e estudos sobre as regras inconscientemente usadas ao falar ou escrever (gramática). Mas isso mudou quando, buscando maior rigor e cientificidade, Ferdinand de Saussure passou a abordar a linguagem de um ponto de vista abstrato, a-histórico, com uma perspectiva que se distingue dos filólogos e gramáticos (BONNICI, 2009). 

Uma das observações de Saussure foi a arbitrariedade da relação entre significante e significado, rompendo com a ideia de correspondência entre linguagem e realidade para defender que a realidade não seria refletida pela língua, mas produzida por ela. Assim, a linguagem se torna uma maneira particular de formular o mundo, profundamente dependente dos sistemas de signos à nossa disposição (EAGLETON, 2003). 

A linguística moderna, iniciada por Ferdinand de Saussure, viria a se configurar como parte de uma ciência ainda por vir, que, adotando o nome de Semiologia, teria como objeto o estudo da vida dos signos no seio da vida social. Desse modo, ao propor o estudo da língua como uma estrutura em si mesma, o método de Saussure influenciou outras áreas ao longo do século XX. Com base em suas ideias, o antropólogo Claude Lévi-Strauss argumentaria décadas mais tarde que, pelo fato de a Antropologia englobar diversos sistemas de signos, é ela quem deveria ocupar o campo da Semiologia que a Linguística ainda não havia reivindicado para si (LÉVI-STRAUSS, 1993). 

A antropologia estrutural, fundada por Lévi-Strauss, tomava como base a ciência dos signos elaborada por Saussure, com particular interesse pela ideia de que o significado das palavras não se dá pela conexão entre palavra e significado, e sim pela “maneira em que um sistema de contrastes, no nível das palavras, é projetado sobre outro, no nível dos significados” (INGOLD, 2019, p. 48). Um linguista fundamental para o desenvolvimento do Estruturalismo Antropológico foi o formalista russo¹ Roman Jakobson, que colaborou com os estudos de Lévi-Strauss na New School of Social Research, em Nova York, a partir de 1941. Tal colaboração exerceu um impacto transformador na Antropologia, que antes estava reduzida a uma ciência descritiva, dedicada somente a apresentar as funções de mitos, tabus, rituais e costumes de culturas não-ocidentais (BONNICI, 2009).

A principal ligação entre o Formalismo e o Estruturalismo moderno ocorreu quando Lévi-Strauss aplicou os métodos de Jakobson em sua análise do mundo social (EAGLETON, 2003; INGOLD, 2019). Com base nos estudos de Jakobson sobre fonemas como opostos binários (/b/ e /p/), Lévi-Strauss buscava entender o que leva à formação de oposições binárias, como bem e mal, a partir do relacionamento entre presença e ausência. A conclusão foi que, em seus primórdios, o pensamento dos povos sem escrita seria binário devido à necessidade de catalogar as coisas por meio de termos básicos, opostos entre si, e essas oposições formariam o que chamamos de cultura (BONNICI, 2009).

As ideias de Lévi-Strauss partiam da compreensão de que “signo” seria tudo o que não é biologicamente determinado, portanto, tudo que é cultura. Nessa perspectiva, os elementos de cada cultura formam um sistema de signos, e os signos só adquirem sentido através das diferenças em relação a outros signos do sistema a que pertencem. Da mesma forma, os itens culturais devem pertencer a um sistema para adquirirem sentido (BONNICI, 2009). Aplicando esse princípio ao totemismo, interpreta-se que há uma “linguagem” fornecida pela natureza, e que a estrutura da sociedade pode ser representada por meio do conjunto de termos concretos que ela oferece. Assim, cada espécie da natureza é uma “palavra”; seus significados, grupos de pessoas na sociedade; “e a conexão totêmica entre uma determinada espécie e um grupo particular vem da projeção das diferenças entre as espécies sobre as diferenças entre os grupos” (INGOLD, 2019, p. 49).

Um dos principais legados do Estruturalismo para as Ciências Humanas foi a “descentralização” do sujeito individual, que deixou de ser considerado como a fonte ou a finalidade de todo significado, como percebeu Lévi-Strauss ao estudar os mitos (EAGLETON, 2003). O antropólogo concluiu que havia certas estruturas constantes às quais qualquer mito poderia ser reduzido, de modo que os mitos de diferentes culturas passaram a ser encarados como variações de alguns temas básicos. Para os estruturalistas, as regras que governam essas combinações seriam relações inerentes à própria mente humana, uma vez que se estruturam por meio de operações mentais universais, como as oposições binárias. Assim, os mitos seriam recursos para pensar, modos de classificar e organizar a realidade (EAGLETON, 2003; BONNICI, 2009).

Ainda na década de 1960, as pressuposições do Estruturalismo começaram a ser criticadas por autores que vieram a ser chamados de pós-estruturalistas. Estes contestavam os esforços estruturalistas de descobrir as regras pelas quais os significantes codificam a realidade, e afirmavam que o significado sempre depende de um contexto específico (BONNICI, 2009). Se o estruturalismo se contentou em separar as oposições binárias em um texto e expor a lógica dessa análise, o pós-estruturalismo, por meio da desconstrução, tentou mostrar como tais oposições por vezes traem a si mesmas (EAGLETON, 2003). 

De acordo com Eagleton (2003), o pós-estruturalismo pode ser relacionado ao movimento estudantil de maio de 1968, que mirava como inimigos os sistemas de crença coerentes e as formas de teoria e organização políticas que buscavam analisar e agir sobre as estruturas da sociedade como um todo (EAGLETON, 2003). Um dos pontos críticos do Estruturalismo era a ausência do sujeito em suas teorias. 

Seguindo essa lógica, toda sociedade que já existiu, ou poderia existir, representa apenas uma de infinitas possibilidades combinatórias, todas elas, no entanto, apoiadas na arquitetura e no potencial generativo de uma mente humana universal (INGOLD, 2019, p. 49). 

Ainda assim, é inegável que os estruturalistas deixaram marcas no pensamento contemporâneo, em especial na área de Humanidades, devido à sua abordagem cientificista aplicada à linguagem. A influência do Estruturalismo antropológico, começou a ser desenvolvido na década de 1940 por Lévi-Strauss, prolongou-se nas décadas de 1960 e 1970 por meio de diferentes abordagens. Um dos primeiros expoentes das novas teorias foi o semioticista Roland Barthes, que em 1957 publica o livro “Mythologies”², no qual aplica seu próprio método estruturalista a fenômenos culturais da época. Situado entre o Estruturalismo e o Pós-estruturalismo – o autor rejeita, por exemplo, a presunção estruturalista de ver todas as fábulas do mundo dentro de uma estrutura única, pois insiste que cada texto é diferente (BONNICI, 2009) –, Barthes compreende que, desde Saussure, o problema da significação se faz presente em vários ramos de pesquisa, a exemplo da Psicologia Analítica e do Estruturalismo. O que esses campos têm em comum é o fato de constituírem ciências de valores, interessadas não somente em circunscrever o fato, mas defini-lo e explorá-lo como um valor de equivalência (BARTHES, 2001). 

Para Terry Eagleton (2003), um dos progressos mais importantes do Estruturalismo está na ideia de que o significado é produto de certos sistemas comuns de significação, pois o que possibilitou formular uma teoria do significado social e histórico foi estabelecer que o significado que podemos articular depende da escrita ou da fala que possuímos. O estudo sistemático dos signos promovido pelos estruturalistas é justamente o que proporciona uma aproximação deles com os semioticistas, que muitas vezes utilizam métodos estruturalistas. A maior diferença é que a palavra “estruturalismo” indica um método de investigação, enquanto “semiótica” indica um campo particular de estudo: o dos sistemas que normalmente seriam considerados como signos (EAGLETON, 2003).

Sobre a Semiótica da Cultura cabe ressaltar que os seus teóricos, mesmo tendo à disposição instrumentos teóricos de várias ciências, como a linguística e a antropologia, ainda não os consideravam suficientes para estudar as propriedades semióticas de sistemas como mito, religião e artes. Por isso a Escola de Tartú-Moscou desenvolve novas teorias, considerando que a cultura gera estrutura, criando em volta do homem uma sociosfera, e que são os códigos que conferem ao mundo essa estrutura, codificando a não-cultura em cultura (MACHADO, 2003). 

A partir dessa perspectiva, veremos mais adiante como os semioticistas da cultura argumentam que os seres humanos se constituem de duas realidades – a social e a biológica – e como essas duas realidades são indissociáveis. Antes é importante esclarecer que, apesar de dialogarem com o Estruturalismo, os semioticistas da cultura não têm como pretensão explicar toda a realidade. Essa ambição também já foi superada no campo da Antropologia, como aponta Tim Ingold (2019), ao reconhecer a complementaridade entre os aspectos social e biológico dos seres humanos:

A ideia de que os seres humanos produzem uns aos outros, corpo e mente, nas tarefas práticas da vida social, atualmente soa quase óbvia. Mas isso só foi possível graças a uma das mudanças mais profundas na antropologia social nos últimos 30 anos, do pensamento predominantemente estruturalista das décadas anteriores a um modo de pensar que enfoca as relações não apenas como derivados da sociedade, mas como o próprio tecido da vida social (INGOLD, 2019, p. 57). 

Na presente pesquisa, a Semiótica da Cultura é essencial para definirmos a cultura como um tecido, composta por textos culturais provenientes de distintos sistemas de significação, o que evidencia o seu caráter estrutural. Mas explorar o impacto do Estruturalismo nas disciplinas de humanidades ao longo do século XX também serve para percebermos suas influências no storytelling, que serão abordadas no segundo capítulo.

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¹  O Formalismo Russo foi um movimento literário que, assim como a Nova Crítica norte-americana, se desenvolveu nas primeiras décadas do século XX, contribuindo para que a teoria literária se consolidasse como disciplina. Os formalistas limitavam o objeto de estudo à materialidade do texto literário, definindo a partir dele os seus princípios, instrumental teórico e propostas metodológicas. 

² Em “Mitologias”, Roland Barthes define a mitologia como um sistema de comunicação. Ambíguo, expansivo e imperativo, o mito é uma fala que serve ao conceito a que remete: não está comprometida com a verdade, pois se trata de um valor, e é mais definida pela sua intenção do que pela sua literalidade. A publicidade se destaca como um dos suportes à fala mítica devido ao grande potencial persuasivo do mito: além de sua significação conter em si uma parte de analogia, o mito soa natural, por mais que seja sempre histórico, pelo fato de naturalizar o conceito que transmite (BARTHES, 2001)

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