"A vida faz mais do que se adaptar à Terra; ela a modifica. A evolução é uma dança bem engendrada na qual a vida e o ambiente material formam um par. Dessa dança emerge a entidade Gaia." (James Lovelock)

As raízes culturais do storytelling

 Apesar de ser um fato reconhecido que as narrativas compõem a experiência humana desde os seus primórdios, somente em meados dos anos 1980 a área de comunicação passou a contar com um Paradigma Narrativo. Ao lançar suas bases, o pesquisador Walter Fisher (1987) afirmava que contar histórias não só é inerente aos seres humanos, como estes também possuem uma capacidade natural para reconhecer a coerência e fidelidade das histórias que contam e escutam.

Assim, o Paradigma Narrativo enxerga a comunicação humana de forma narrativa. Diferente dos estudos estruturalistas, que abordam narrativas formalmente, o Paradigma Narrativo as compreende retoricamente, ou seja, como um modo de influência social (FISHER, 1987). O autor argumenta: 

Não importa o quão estritamente um caso seja discutido – cientificamente, filosoficamente ou legalmente –, ele sempre será uma história, uma interpretação de algum aspecto do mundo que é historicamente e culturalmente fundamentado e moldado pela personalidade humana (FISHER, 1987, p. 49, tradução da autora).

Décadas antes, Mircea Eliade (1972) afirmava a importância dos mitos na constituição humana, pois transmitir histórias sobre a origem das coisas concedia, aos contadores e ouvintes, o poder de discernimento do Mundo “como Cosmo perfeitamente articulado, inteligível e significativo” (ELIADE, 1972, p. 128). Por revelarem modelos de conduta e significação à existência humana, foram os mitos que permitiram o despontar das ideias de realidade, valor e transcendência. Inclusive, Eliade (1972) observa que, quando o pensamento mítico passou a ser alvo da crítica dos racionalistas gregos, o que se contestava como ficção era justamente a conduta dos deuses, que não correspondia aos seus ideais: “a principal crítica era feita em nome de uma ideia cada vez mais elevada de Deus: um verdadeiro Deus não poderia ser injusto, imoral, ciumento, vingativo, ignorante, etc.” (ELIADE, 1972, p. 131).

Foram essas transformações ocorridas na cultura grega que levaram o mito a ser visto como sinônimo de “ficção” até os nossos dias. Walter Fisher (1987) também se refere ao Período Clássico na Grécia Antiga para expor que, a princípio, o conceito de logos condensava vários sentidos: histórias, razão, concepção, discurso e pensamento. Apenas com o desenvolvimento do pensamento filosófico, logos e mythos foram desassociados: o primeiro se tornando cada vez mais ligado ao que entendemos por “pensamento”, e o segundo, à “imaginação”. Como explica Fisher (1987), foi Platão quem passou a definir como logos o discurso filosófico, em busca de uma apreensão da verdade, enquanto mythos se tornaria o que conhecemos como “mito”, associado à ficção. Essa perspectiva platônica afirmava o discurso técnico, filosófico, como racionalmente superior, pois apesar da retórica e da poética serem consideradas importantes para a vida da comunidade, elas não deveriam ser vistas como artes intelectuais sérias (FISHER, 1987).

Aristóteles, aluno de Platão, reforçou essa hierarquia dos discursos a partir da relação deles com o “verdadeiro conhecimento”, concebendo-os, segundo Fisher (1987), de modo que o discurso racional se mantivesse acima dos outros. Logos era considerado superior à retórica e à poética, uma vez que, de acordo com as definições aristotélicas, a retórica só poderia levar a um tipo de conhecimento provável, baseado na opinião de especialistas, enquanto a poética serviria mais às funções artísticas de “imitação” e “participação catártica” do que para a tomada de decisões. Fisher (1987) afirma que, mesmo que ao longo da História tenham se desenvolvido discussões sobre qual discurso – logos, mythos ou retórica – seria superior ao outro, o fato de as concepções de Platão e Aristóteles fundarem a sociedade ocidental levou à predominância do discurso racional, relegando a tomada de decisões aos “especialistas” em conhecimento, verdade e realidade (FISHER, 1987).

É interessante notar que, apesar das críticas feitas pelos racionalistas gregos à mitologia clássica, as obras de Homero e Hesíodo contribuíram imensamente para unificar e articular a cultura grega, em um movimento que parece contraditório:

Em nenhuma outra parte vemos, como na Grécia, o mito inspirar e guiar não só a poesia épica, a tragédia e a comédia, mas também as artes plásticas; por outro lado, a cultura grega foi a única a submeter o mito a uma longa e penetrante análise, da qual ele saiu radicalmente ‘“desmitificado”. (ELIADE,1972, p. 130)

Eliade (1972) argumenta que o impacto cultural dos mitos gregos permaneceria evidente na contemporaneidade, não só por meio de alegorias, mas também porque a literatura e as artes plásticas no Ocidente se desenvolveram em torno dos deuses e heróis gregos. Estes deuses perderam suas formas clássicas com o triunfo do monoteísmo cristão, que predominou sobre as crenças pagãs durante a Idade Média, mas seguiram sendo cultuados, em disfarce. “Desde o fim da Antiguidade - quando não eram mais tomados ao pé da letra por nenhuma pessoa culta - os deuses e seus mitos foram transmitidos à Renascença e ao século XVII, pelas obras, pelas criações literárias e artísticas” (ELIADE, 1972, p. 137). Um exemplo está no fato de encontrarmos a imagem da deusa grega Gaia ainda presente na cultura ocidental, inclusive como alusão do movimento ambientalista – por mais que a descrição feita por Hesíodo se pareça mais com a de uma Mãe Terrível do que de uma bondosa Mãe Natureza¹. 

Ao ir além da influência dos mitos nas criações artísticas, o Paradigma Narrativo reconhece que nenhuma forma de discurso, nem a mais racional, contém em si, de forma total, os valores de conhecimento, verdade e realidade. Fisher (1987) afirma que o mythos, em específico, possui importância tanto cognitiva como estética: “Eu defendo ainda que a comunicação humana, em todas as suas formas, está imbuída de mythos – ideias que não podem ser verificadas ou provadas de nenhuma forma absoluta” (FISHER, 1987, p. 19, tradução da autora) . Para o autor, a narrativa sempre guarda o potencial de aprimorar a compreensão da ação e da comunicação humanas, por meio de uma lógica própria: a racionalidade narrativa. 

A noção de racionalidade narrativa implica que todas as instâncias de comunicação humana estão imbuídas de logos e mythos, ou seja, constituem verdade e conhecimento, e são racionais (FISHER, 1987). Isso porque, ao considerar que todas as formas de comunicação, ou ação simbólica, podem ser vistas como histórias, como interpretações de fatos em sequências, Fisher (1987) conclui que todos os tipos de discurso refletem logos, em um grau ou outro.

Por meio do Paradigma Narrativo, Fisher (1987) defende a ideia de que as narrativas são uma forma legítima e útil para interpretar e compreender as relações humanas. Assim, ao abordar o uso delas como um modo de influenciar pessoas, os estudos de Fisher (1987) contribuem com a presente pesquisa por destacarem dois aspectos fundamentais do storytelling, que compõem o que o autor chama de “racionalidade narrativa”: coerência e fidelidade.

O princípio da coerência coloca em foco a integridade de uma história como um todo, enquanto o princípio da fidelidade se refere ao componente individualizado das histórias – se elas representam afirmações precisas sobre a realidade social e, portanto, constituem boas razões para acreditar ou agir. (FISHER, 1987, p. 105, tradução da autora) 

A coerência diz respeito à verossimilhança ou probabilidade da história, podendo ser tanto de ordem material, argumentativa ou estrutural, quanto se referir a algum personagem, uma vez que os atores ou narradores devem passar credibilidade. Já a fidelidade se refere aos valores, que devem coincidir ou soar verdadeiros aos valores de quem escuta a história, considerando-os em relação aos fatos, relevância, consequências, consistência e o que se crê como ideais para a conduta humana (FISHER, 1987). Aplicando esta noção a narrativas fantásticas que fazem uso de arquétipos ou referências mitológicas, por exemplo, seu potencial de persuasão não estaria ligado à correspondência dessas histórias ao real, mas aos valores transmitidos ou reforçados por elas. 

Perceber o “ato de contar histórias” como um meio de influenciar pessoas tão válido quanto o discurso racional ou o retórico é pertinente para analisarmos a função persuasiva dos filmes publicitários do Greenpeace. Ao aprofundar o estudo das narrativas no Ocidente, abordaremos, por meio da “Poética” de Aristóteles (2004), o que o filósofo afirma ser sua parte mais importante: a estrutura.

>>>

¹  O antropólogo Bruno Latour comenta que, na narrativa de Hesíodo, Gaia é uma potência aterrorizante, mas sábia, progenitora constante de monstros e deuses. “Sua astúcia se manifesta, em primeiro lugar, no fato de que ela própria jamais comete crimes abomináveis, mas o faz sempre por intermédio daqueles a quem inspirou vingança” (LATOUR, 2020, p. 138).




Nenhum comentário: