"A vida faz mais do que se adaptar à Terra; ela a modifica. A evolução é uma dança bem engendrada na qual a vida e o ambiente material formam um par. Dessa dança emerge a entidade Gaia." (James Lovelock)

Eu sou a Amazônia (2020)

O filme publicitário “Eu sou a Amazônia” é composto por diversas imagens, algumas delas captadas por drone, que documentam a Amazônia e outros locais ao redor do mundo. Acompanhado por uma música de fundo na qual predominam sons de piano e instrumentos de corda, o voice-over da narradora-personagem assume a voz da floresta amazônica. Efeitos sonoros, como batidas de coração, são acrescentados em alguns trechos a fim de “humanizar” a Amazônia.

O roteiro do vídeo foi escrito por Rosana Villar, jornalista do Greenpeace Brasil em Manaus, com narração por Priscila Sol, atriz que já participou de outras produções do Greenpeace, e montagem realizada por Ana Roman, que também trabalhou em outros projetos da organização. As imagens exibidas, além das que são provenientes do banco de imagens do Greenpeace, são creditadas a várias pessoas: Leo Otero, Fernanda Ligabue, Valentina Ricardo, Fábio Nascimento e Bruno Kelly. Algumas estão baseadas no Amazonas, outras fazem parte do Greenpeace ou de projetos de ativismo socioambiental como o Amazônia Real.

As primeiras imagens são aéreas, captadas por um drone que percorre a área florestal da Amazônia. Enquanto observamos a umidade da neblina sobre uma extensa cobertura vegetal, uma voz feminina suspira (“Respiro”) e afirma “Eu sou o coração pulsante da Terra”. Através dessa linguagem poética, a associação da floresta ao órgão do corpo responsável pela circulação do sangue recupera uma visão organicista da Terra, da qual a Amazônia constitui uma parte fundamental.

As imagens mostradas ao longo do vídeo se referem sempre, literal ou metaforicamente, ao texto da narração. A Amazônia (Spiritus) nos guia através dessas imagens da Grande Mãe (Mater), que por sua vez é representada como o todo, o Grande Círculo, "o mundo, ou natureza" (NEUMANN, 2021, p. 44). Se tomarmos Vogler (2015) como base, a narradora-personagem corresponde ao arquétipo de mentora, ou velha sábia, pois fala em nome da Grande Mãe, por mais que constitua apenas uma parte dela. A voz da Amazônia, responsável por ensinar ou treinar o herói, representa o Eu Supremo, o Self. Inspirada por uma sabedoria divina, é ela quem guia a audiência ao longo da história, motivando-a a agir e a assumir o papel de herói. 

Eu sou a Amazônia (2020)

No início do vídeo, em uma das imagens da extensa cobertura vegetal que transmitem a impressão de grandiosidade da floresta, há uma casa de taipa. Simples e integrada à floresta, passa a ideia de um “retorno às origens”, presente no imaginário dos mitos do Fim do Mundo que visam restaurar um tempo de harmonia e pureza, distante da modernidade. A neblina que se forma acima da vegetação é apenas umidade, e em nada se assemelha à fumaça industrial. O ciclo da água, que forma os rios e as nuvens, é traduzido na linguagem poética da narradora: “a água sob meus pés alcança o céu. Inunda o ar de umidade e vida”. 

Outra associação poética acontece quando a Amazônia narra “espalho braços poderosos”, enquanto são mostradas imagens do braço de um rio. Quando ela afirma em primeira pessoa que é uma “boa mãe”, são exibidas imagens de pessoas e animais nativos, aos quais se refere como seus filhos, na terceira pessoa. Assim, a Amazônia se coloca à parte dos seres que a compõem, o que reforça a categorização da floresta antropomorfizada como Spiritus. E por ser uma parte do todo, uma manifestação – anima, “como a alma” – da natureza, as vozes da Mater e do Spiritus se confundem. 

Essa observação vale apenas para a voz que narra, pois as imagens da Amazônia que abrangem o “todo” – ou seja, o meio ambiente que inclui seres humanos, fauna e flora, assim como os ciclos naturais e ideais de vida e harmonia – são categorizadas como Mater. Consideramos que uma das características do Grande Feminino, arquétipo primordial, é conter todos os seres e elementos de forma indissociável, à semelhança do inconsciente (NEUMANN, 2021). 

Eu sou a Amazônia (2020)

Ao retratar a Grande Mãe como um ideal de equilíbrio entre homem e natureza, estável e propício à manutenção da vida, explora-se sobretudo seu caráter elementar, mais conservador e associado ao que é tradicional. Já a Amazônia se destaca por seu caráter de transformação, pois além de emergir da Mater, soa como uma força que movimenta a narrativa e que leva à transformação do herói, aproximando-se do conceito de anima. De acordo com Neumann (2021), a anima está mais ligada ao caráter de transformação porque leva o ego (herói) a experimentar novas formas de se relacionar com o inconsciente (Grande Mãe). Esta analogia explica porque o herói correria o risco de ser aniquilado diante do poder contido no caráter elementar da Grande Mãe. 

Durante o segmento da apresentação, a Amazônia segue sendo representada pela harmonia entre humanidade e natureza, com ênfase em elementos ligados ao trabalho manual, nutrição e fertilidade, além da cobertura florestal. “A Grande Mãe-Terra, que a tudo dá vida, é eminentemente a mãe de tudo o que é vegetal" (NEUMANN, 2021, p. 61). A ideia de imensidão da natureza, que ocupa a maior parte da tela, é reforçada por imagens de crianças correndo em uma parte rasa do rio. Não vemos o rosto das pessoas, mas silhuetas e partes do corpo, como mãos e costas, enquanto a Amazônia descreve seus filhos como “fortes e saudáveis”. Vemos um agricultor cultivando mandioca, um pescador recolhendo sua rede, mãos que extraem polpa do açaí e o manuseio de um coração de bananeira; imagens que também podem ser associadas a comunidades tradicionais e agricultura de subsistência. O segmento se encerra com o close de uma onça atravessando o rio, realçando a integração dos seres no ecossistema¹, que reflete o ideal da natureza em harmonia, como expressa a própria voz calma da narradora. 

Eu sou a Amazônia (2020)

A ação complicadora tem início com uma mudança no tom de voz, quando a Amazônia questiona “Mas, por que estou sob ataque?” e são exibidas imagens de áreas desmatadas, queimadas e exploração de minérios. É possível estabelecer uma clara oposição entre as imagens da apresentação, que representam o suposto equilíbrio natural e permanente da Amazônia, e as imagens da devastação promovida devido à exploração de seus recursos. Assim criam-se sentidos acerca da oposição entre manutenção e devastação, vida e morte. No entanto, não são mostradas imagens dos “destruidores”: se antes o foco estava nas atividades de subsistência dos “filhos” da Amazônia, agora vemos apenas a extensão das áreas exploradas ou instrumentos da exploração, como um carro que atravessa a estrada de terra em meio à floresta desmatada. 

Eu sou a Amazônia (2020)

A exemplo do carro, o uso de máquinas para explorar os recursos da Amazônia também contrasta com o trabalho manual que caracterizava a subsistência. Outras imagens que evidenciam o estado da Amazônia ao ser “invadida, queimada e envenenada” são das áreas de mineração, áridas em contraste com o verde da floresta, e das queimadas, nas quais o fogo predomina sobre a vegetação e sua fumaça sobre o céu. O fogo, em um sentido positivo, pode ser lido como purificador e regenerador, mas seu aspecto destrutivo possui uma função diabólica: queima e anula qualquer possibilidade de regeneração. Este aspecto negativo “obscurece e sufoca, por causa da fumaça; queima, devora e destrói: o fogo das paixões, do castigo e da guerra” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2001, p. 443). Assim as oposições se tornam ainda mais evidentes, caracterizando o “ataque” sofrido pela narradora. 

Podemos dizer que o elemento fogo marca a ação complicadora, em oposição à água e à terra, que, na apresentação, estavam associadas à permanência, vida, fertilidade. De acordo com Neumann (2021): "A água e a terra são os elementos da natureza essencialmente ligados ao simbolismo do vaso" (NEUMANN, 2021, p. 60). No estágio matriarcal, quando se estabelece uma relação de equivalência entre mulher, corpo, vaso e mundo, é no símbolo do vaso que se vivencia de forma natural o caráter elementar do feminino. “Com efeito, como equivalente ao Grande Círculo, é o vaso que preserva, contém e protege. Além disso, também é o vaso provedor que fornece o de comer e o de beber ao nascituro e ao nascido" (NEUMANN, 2021, p. 56). 

O equilíbrio é rompido devido à exploração dos minérios, da madeira e, consequentemente, a destruição da vegetação, que também afeta o ciclo das águas. O meio ambiente preservado que a narradora tinha apresentado é ameaçado por “mãos que sufocam… mutilam…”. Após um suspiro pesaroso, diferente da longa respiração presente no início do vídeo, a Amazônia revela que está sendo agredida por seus próprios filhos, “que decidem qual vida tem mais valor”. Nesse trecho é exibida a imagem de um agente ambiental segurando o corpo de um animal morto pelas queimadas. 

Eu sou a Amazônia (2020)

O que se percebe como injustiça não é a morte em si, mas a morte desnecessária, cruel e causada pelo homem, com fins de exploração. Afinal, a morte em si é um dos mistérios da Mãe Terrível que “apoiam-se na função devoradora-aprisionadora, que retoma para si, novamente, a vida e o indivíduo.” (NEUMANN, 2021, p. 83). Em seguida são mostradas mais imagens de queimadas, com foco em uma árvore sem folhas e ao fundo um céu laranja, contrastando com a silhueta dos galhos. Em cima deles, três saguis tentam sobreviver cercados pelo fogo, reforçando que se trata de um ambiente pouco propício à vida. 

O caráter elementar da Grande Mãe, predominante nas imagens e transmitido pela voz da Amazônia – que emerge da Mater e, como mentora, desempenha o papel de sua porta-voz – abrange, em polos distintos, os mistérios da morte e os mistérios da vegetação. Estes estão relacionados “aos rituais da fertilidade da Grande Mãe, que se referem ao crescimento e à proliferação da vida” (NEUMANN, 2021, p. 83). Portanto, a ação complicadora se caracteriza por ações humanas que investem contra o poder da Grande Mãe em ambos os polos, pois destroem a vegetação e dizimam formas de vida, desequilibrando a constância do caráter elementar. Desobedecem a autoridade da Mater, que “não é somente a provedora de vida, mas também aquela que dá a morte” (NEUMANN, 2021, p. 180). 

O ponto de virada para o desenvolvimento se dá no close de calotas polares derretendo, como uma ampulheta, o que provoca maior senso de urgência para a ação do herói. São mostradas imagens de diversos locais ao redor do mundo, distantes da Amazônia, mas impactados pelo desequilíbrio ambiental, enquanto a narradora afirma que “no fim, estamos todos conectados”. O reflexo global de ações locais é enfatizado com mais uma imagem do círculo polar ártico, na qual um urso polar tem dificuldades na passagem de uma calota a outra, o que contrasta com a imagem da onça que atravessa o rio durante a apresentação. 

Eu sou a Amazônia (2020)

Outra imagem que se destaca neste segmento é a de uma inundação em Nova Jersey, ocorrida após o furacão Sandy, porque se trata do único trecho que mostra um “desastre natural”, subentendido como uma consequência do desequilíbrio provocado pelas ações humanas. Por meio dessa sequência, a Amazônia não ameaça – pois não tem força para tal –, mas sugere em tom de alerta que as ações humanas geram uma reação da Mater, poderosa o suficiente para revidar. O desastre não foi provocado pela Amazônia (Spiritus), que é vítima da destruição ambiental, mas pela Mater, representada na Mãe Terrível, como no lema que corresponde ao lado obscuro do Grande Feminino: “Se você não for obediente, vou ter que usar a força” (NEUMANN, 2021, p. 79). O papel desempenhado por essa Mater se distancia do ideal harmonioso, que visa o equilíbrio, da Gaia ambientalista; em realidade, assemelha-se mais ao seu oposto, encontrado na hipótese de Medeia².

Encerrando o desenvolvimento, segmento marcado por incidentes que provocam maior emoção no protagonista, a música se intensifica. A tela exibe as águas escuras de um mar cujas ondas estão densas de petróleo, e as águas alaranjadas de um rio contaminado por rejeitos de mineradoras, imagens que se opõem às águas naturais da Amazônia, demonstrando novamente como as ações humanas afetam o meio ambiente. Ao final, o elemento fogo surge novamente nas imagens de um tronco, derrubado no meio da floresta, sendo queimado, e o som das chamas se sobrepõe à música de fundo. Outra imagem das queimadas na floresta mostram seu caráter destrutivo.

A música para e a tela escurece com um fade out, exibindo a frase conclusiva: “A Amazônia depende de nós. Nós dependemos da Amazônia”. Pelo fato de o Greenpeace afirmá-la na primeira pessoa do plural, compreende-se que a organização também se coloca como Filius disposto à ação, e espera que a audiência tenha chegado à mesma conclusão. Simultaneamente, a Amazônia diz “Agora eu preciso de ajuda”, e em seguida a tela é ocupada pela identidade da campanha “#TodosPelaAmazônia”, ao som de batidas do coração. Esse é o clímax, segmento de maior ação que leva à resolução final, a depender apenas do protagonista. 

Eu sou a Amazônia (2020)

A relação de interdependência entre “nós” e “Amazônia” está refletida no inescapável pertencimento da humanidade ao Grande Círculo, simbolismo matriarcal baseado na imagem do vaso que, como o corpo feminino, contém algo dentro de si. Pois, como explica Neumann (2021), a imagem feminina é associada ao "recipiente onde se forma a vida, continente de todas as coisas vivas, as quais depois descarrega no mundo" (NEUMANN, 2021, p. 56). Apesar do caráter elementar do Grande Feminino não conter apenas traços positivos, são eles que o Greenpeace escolhe realçar no vídeo, cuja metade é composta por imagens de harmonia e equilíbrio. Isto intensifica a comoção provocada pelas imagens de destruição da Amazônia, que são exibidas ao longo da ação complicadora, em contraste com o ideal de meio ambiente equilibrado apresentado no primeiro segmento. 

A Call To Action assume a forma de hashtag da campanha (#TodosPelaAmazônia). Vale frisar que a audiência foi direcionada para ela após se deparar com mais imagens de destruição ambiental, como as queimadas da Amazônia. Ao mesmo tempo, a narradora apela, pedindo ajuda ao herói, representado pela audiência e pelo próprio Greenpeace, e distinguindo-se da figura de poder, ameaçadora, sugerida anteriormente com a imagem de desastres naturais. Soma-se ao clímax o som da batida de um coração, que não só humaniza a Amazônia como também a representa enquanto “coração pulsante da Terra”. 

Por outro lado, observamos que a Mater só impõe seus poderes a partir do desenvolvimento. Neste segmento em que são mostradas as consequências da ação humana voltando-se contra a própria humanidade, a Grande Mãe se apresenta em seu caráter elementar e de transformação, com a força do simbolismo do Grande Círculo. “A sensação de vida de todo ego-consciência que vivencia suas forças como diminutas perante os poderes é dominada pela supremacia da transformação contida no Grande Círculo” (NEUMANN, p. 44). Dessa forma, o fato de não ser possível escapar das ações da Mater é aliviado pela vulnerabilidade da Amazônia antropomorfizada. Ainda assim, o filme publicitário “Eu sou a Amazônia” transmite o significado terrível da Grande Mãe, “para quem nada importa a autonomia do indivíduo ou do ego” (NEUMANN, 2021, 48). 

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¹Conceito fundamental para a teoria e a prática da ecologia, ecossistema é a unidade básica que envolve comunidades de organismos de várias espécies e o ambiente inanimado que habitam, e também as interações delas entre si e com o habitat natural. Por abrangerem todos os seres vivos dentro de uma comunidade biológica, suas influências e interrelações com o meio físico, os ecossistemas formam cadeias que demonstram a interdependência dos organismos dentro de um sistema estável, equilibrado e autossuficiente.

² A hipótese de Medeia, proposta pelo paleontólogo Peter Ward (2009), contesta a hipótese de que a biosfera se autorregula para preservar a vida, afirmando que cada espécie se adapta visando a própria sobrevivência. O tema voltará a ser abordado na síntese analítica dos filmes publicitários. 

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