O vídeo “Jornada das Tartarugas” foi realizado em parceria com o Estúdio Aardman, conhecido por utilizar técnicas de claymation , um tipo de stop motion, para criar seus personagens e cenários. O estúdio britânico, que atualmente também trabalha com animação digital, consolidou-se internacionalmente por séries e longa-metragens com animais antropomorfizados como “A Fuga das Galinhas” (2000), considerado o filme de stop motion com a maior arrecadação nas bilheterias de todos os tempos (AARDMAN, 2022). Fundado com o nome de Aardman Animations por David Sproxton e Peter Lord em 1972, ao longo das décadas o estúdio produziu séries de animação, como “Wallace e Gromit” (1989) e “Shaun, o Carneiro” (2007), e videoclipes, como “Sledgehammer” (1986) de Peter Gabriel e “My Baby Just Cares For Me” (1987), de Nina Simone.
À primeira vista, o título “Jornada das Tartarugas” parece referenciar a Jornada do Herói, ou mesmo se tratar de um vídeo sobre a migração de tartarugas marinhas, o que, no formato de uma animação, teria um teor mais didático do que documental. No entanto, assim que o filme publicitário tem início, percebemos que ele reproduz o formato de um documentário conduzido pelo relato do pai-tartaruga, narrador-personagem em primeira pessoa. O seu voice-over possui tom confessional e é acompanhado por imagens que simulam a “realidade” do que seria um registro de viagem feito pela câmera da família de tartarugas. A música de fundo é composta por sons de piano e, nos momentos mais dramáticos, instrumentos de corda.
A Jornada das Tartarugas (2020) |
Na gravação caseira, o pai-tartaruga é quem dirige o “carro”, que é uma concha, e assume a responsabilidade pelas decisões da viagem. Na gravação do relato, ele carrega um olhar melancólico e está ambientado numa sala em tons escuros, sombreados, o que nos leva a antever uma tragédia. Por mais que as imagens mostradas pela gravação caseira sejam descontraídas, assim que o pai-tartaruga dá início à história com a frase “Começou como qualquer outra viagem para casa…”, entendemos que algo os pegou desprevenidos.
Ao longo da primeira parte do vídeo, que corresponde à apresentação, observamos a dinâmica da família de tartarugas e a personalidade de cada membro dela. Apesar de serem animais, muitos personagens usam acessórios, reforçando a antropomorfização: a mãe tem um colar, um dos filhos usa boné, o caçula segura um polvo de pelúcia, e quem está gravando tudo é a filha, portanto sua perspectiva é a mesma que estamos assistindo. Alguns momentos de alívio cômico também “humanizam” a situação, facilitando a conexão entre público e personagens, como os desentendimentos entre as crianças e a confusão da mãe-tartaruga, que faz pose para uma foto até a filha avisar que estava gravando.
Como o filme publicitário foi construído de modo a recriar o que seriam cidades e estradas no fundo do mar, a própria natureza é apresentada como cultura. Não há uma figura de Mater colocada acima de todos os seres, nem se impõe um ideal de harmonia entre seres humanos, fauna e flora, que constituiria um meio ambiente equilibrado, pois toda a fauna marinha é antropomorfizada.
Entretanto, mesmo que não corresponda à Mater no esquema quaternário, através da personagem da mãe-tartaruga conseguimos identificar o simbolismo da Grande Mãe presente na própria família. “Ainda que o caráter elementar, assim como o de transformação, seja vivenciado na projeção como qualidade do mundo, surge, sobretudo, como qualidade psíquica precisamente do Feminino” (NEUMANN, 2021, p. 44). Por se tratarem de personagens femininas, ela e a filha incorporam o caráter elementar e o de transformação do Grande Feminino, por mais que, na mãe, eles sejam mais evidentes. “Nutrir e proteger, manter aquecido e carregar no colo são as funções em que atua o caráter elementar do Feminino em relação à criança, e mais uma vez essa também é a relação básica para que a mulher vivencie a própria transformação” (NEUMANN, 2021, p. 45).
O início da ação complicadora ocorre quando a família se depara com o fechamento da rota migratória, bloqueando a passagem. Após esse primeiro imprevisto, a sequência de situações “humanizantes” continua: a mãe tenta distrair o caçula com uma brincadeira de adivinhação, o pai dá sinais de cansaço e decide seguir outro trajeto, e a filha reclama do “desvio do papai”. A mãe também parece reprovar a decisão do pai-tartaruga, revirando os olhos, e o fato de a filha já conhecer o caminho sugere que a viagem era frequente para a família. O take seguinte é de plano aberto e não possui vinheta, portanto não teria sido gravado pela família. Ele apresenta uma perspectiva mais abrangente, mostrando para a audiência, além da travessia do "carro" por uma área de corais, que há brocas perfurando o solo marinho. Os membros da família parecem não perceber, distraídos com problemas menores: a mãe está preocupada se o pai conhece mesmo o caminho, e o caçula reclama porque quer ir no banheiro.
Em voice-over, o narrador relata que só percebeu algo errado quando o carro começou a trepidar, enquanto na gravação caseira ele tenta se convencer de que “são só obras na estrada”, tranquilizando a família. A conexão entre os espectadores e as tartarugas continua se estabelecendo porque estas desempenham papéis bem conhecidos, reproduzindo vínculos familiares. Apesar das semelhanças com seres humanos, há momentos descontraídos que evidenciam o fato de os personagens estarem no fundo do mar, como quando o caçula flutua para “fora” do carro-concha. Neste trecho, a broca que estava visível à distância começa a extrair petróleo.
A Jornada das Tartarugas (2020) |
Em seguida, a gravação caseira corta para o momento em que a família finalmente chega em casa, aliviada. Vemos a chegada pela perspectiva da filha que, ao mostrar a casa, situa o ângulo da câmera entre as cabeças do pai e da mãe, o que reforça a ideia de lar. As águas, porém, possuem um tom alaranjado.
A Jornada das Tartarugas (2020) |
Quando o filho percebe que algo está estranho (“Por que tá tão calmo?”), prevemos que deve vir mais um imprevisto adiante. E, como mais um erro que se soma aos enganos anteriores da família, a mãe se convence de que os vizinhos devem estar viajando, por isso a casa ao lado está vazia. Os personagens não sabem o que está acontecendo, mas podemos imaginar que, na iminência de algum desastre, os vizinhos perceberam algo de errado e evacuaram a tempo. Neste trecho há outro take de plano aberto, que mostra o carro da família estacionando na garagem, enquanto uma luz forte é lançada desde a superfície da água. A mãe é a primeira a desembarcar, com o pretexto de preparar um chá, enquanto o pai assume o cuidado dos filhos. Uma luz branca se torna cada vez mais intensa, vindo agora do lado esquerdo, aproximando-se da família.
Para a audiência, o suspense em relação ao desfecho aumenta à medida em que os sinais de que algo daria errado se tornam mais evidentes, pois a família de tartarugas demonstra despreparo por não os perceber. A conexão com os espectadores também é fortalecida porque a ingenuidade das tartarugas, que ignoram os imprevistos ocorridos durante a viagem, desperta compaixão. As mudanças ocorridas no habitat natural delas – perfuração do solo para extração de petróleo, acúmulo de lixo nos oceanos e pesca industrial – somam-se ao longo do vídeo como desafios que, por não serem enfrentados, culminam em uma tragédia.
Esses erros cometidos sem querer, como acidentes e conclusões precipitadas, podem ser enquadrados no que Aristóteles chama de hamartia (ARISTÓTELES, 2004). É um elemento central das tragédias gregas, que influenciaram as narrativas ocidentais, e que provoca maior impacto na audiência se o erro for cometido por pessoas comuns, ou seja, personagens com os quais é possível se identificar. O vídeo “Jornada das Tartarugas” dialoga principalmente com quem vive situações semelhantes às da viagem em família, na qual os personagens interpretam papéis estereotipados: pai decide, mãe cuida, crianças brincam. Como a animação reproduz situações comuns e elementos como casas, estradas e até o trânsito de carros no fundo do mar, isso também facilita a conexão com a audiência, que se vê retratada no vídeo.
No ápice da ação complicadora, o filme publicitário é marcado por um ato destruidor ou doloroso, que na tragédia grega seria chamado de pathos. Do canto esquerdo, de onde vem a luz branca, uma máquina se aproxima, passando por cima dos corais e em direção à família. Quando as tartarugas percebem, já é tarde demais: a gravação caseira começa a falhar, o solo estremece, a tela escurece e só conseguimos ver flashes, que mostram a expressão de pavor da família. A mãe, que estava mais vulnerável em frente à porta de casa, escuta os gritos da filha alertando para que ela se proteja da máquina. Então a gravação termina.
A Jornada das Tartarugas (2020) |
Mesmo se tratando de uma história sobre tartarugas antropomorfizadas, portanto dotada de um caráter fantástico, “Jornada das Tartarugas” atende aos princípios de fidelidade e coerência (FISHER, 1987) a ponto de reproduzir, inclusive, o que ocorreria na gravação caseira de um desastre, o que a torna ainda mais verossímil. A ação complicadora, caracterizada pelos elementos de destruição ambiental (Diabolus), termina assim que a tela volta a ser ocupada pelo relato do pai-tartaruga, com o rosto voltado para a câmera.
O terceiro segmento do filme é o desenvolvimento, marcado pelo luto da família. Além de criar um adiamento do desfecho, é o momento que provoca maior emoção na audiência ao mostrar a família reunida, inconsolável, sem a mãe. O pai-tartaruga mal consegue falar e, quando o caçula pergunta “onde está a mamãe?”, torna explícito o que já estava subentendido. A morte da mãe-tartaruga é o ato doloroso (pathos) da tragédia. Pela primeira vez vemos de perto o rosto da filha, que usa um gorro na cabeça, e em uma das mãos o pai segura o colar da mãe-tartaruga, como uma lembrança que restou dela.
A Jornada das Tartarugas (2020) |
Após o momento de luto, a tela escurece e o Greenpeace informa, em letras brancas, dados sobre a realidade das tartarugas (“6 em cada 7 espécies de tartarugas marinhas estão ameaçadas de extinção”) e um alerta (“Precisamos de santuários marinhos em um terço dos oceanos para que tartarugas e outras espécies fiquem a salvo”). O tom do texto corresponde à função do mentor (VOGLER, 2015) ou à imagem arquetípica do velho sábio, por isso foi categorizado como Mater, que assim como o Pater pode adquirir a forma de um código de conduta ou um Ente Supremo. Como neste filme publicitário a Mater não possui características que a diferenciam do Pater, o esquema quaternário original, com imagens arquetípicas patriarcais, também serve para a sua análise.
A tela escurece novamente e ouvimos ao fundo uma voz masculina adulta, que afirma com tristeza não ser possível mudar o passado. Aos poucos, a tela é ocupada por uma “foto” da família em um protesto, mas feliz: o caçula é carregado nas costas do pai-tartaruga e segura um pequeno cartaz escrito em letras infantis (“Save our home”), com a foto da mãe e um coração; o filho segura outro cartaz (“like the oceans, we rise”); e a filha segura um cartaz (“Ocean sanctuaries now”) enquanto com a outra mão grava o protesto com o celular. O ponto de virada do desenvolvimento para o clímax ocorre quando outra voz, feminina e mais infantil, completa com um tom determinado: “mas podemos exigir um futuro melhor”.
A Jornada das Tartarugas (2020) |
Essas últimas duas vozes em off possuem um tom diferente das vozes que dublaram os personagens, criando a impressão de que não correspondem às vozes do pai-tartaruga e da filha. É possível interpretá-las como vozes de outras pessoas que estão se juntando ao protesto das tartarugas, o que incentiva a audiência a se unir ao grupo em defesa dos santuários marinhos. O posicionamento da voz feminina (“Mas podemos exigir um futuro melhor”) marca o clímax, pois reforça que a ação decisiva para um bom desfecho da história depende apenas do herói. Para que isso aconteça, a audiência (Filius) deve escutar a sabedoria da Mater e salvar as tartarugas (Spiritus), cumprindo o que ordena a CTA: “Assine a petição”.
De um modo geral, a história contada se passa com tartarugas (Spiritus) que, antropomorfizadas, levam à identificação do espectador (Filius) com os personagens. Quem narra é o pai-tartaruga, que se dirige à audiência para alertar sobre o que está acontecendo nos oceanos devido à interferência humana (Diabolus). A voz de um Ente Supremo, ou da própria natureza (Mater), surge apenas no final, e ganha força ao receber apoio de outras vozes, que podem representar tanto os personagens como a audiência, reforçando a identificação entre Filius e Spiritus.
Esse é o vídeo analisado com a maior ação complicadora e os menores desenvolvimento e clímax. Aplicando a ele os conceitos de Vogler (2015), o narrador-personagem (pai-tartaruga) corresponde ao papel de aliado, que estabelece uma conexão com o herói mas expressa qualidades indesejadas por ele, como vulnerabilidade. Já os imprevistos ignorados pela família de tartarugas correspondem ao que o autor chama de arquétipo do arauto, uma vez que apresentam desafios e anunciam a iminência de mudanças significativas, tornando mais difícil para o herói não tomar uma decisão.
Após o pai-tartaruga contar sua história trágica, que também serve como um conselho ou alerta para a audiência, não resta dúvidas para o herói de que é necessário agir em defesa da campanha do Greenpeace. A família de tartarugas ainda precisa da ajuda da audiência, pois mesmo que se una a outras tartarugas em protesto, demonstrou ao longo do vídeo ser inofensiva devido à sua ingenuidade, por isso não poderia ser categorizada como herói (Filius).
Diferente do vídeo “Eu sou a Amazônia”, em “Jornada das Tartarugas” a Grande Mãe não apresenta seu lado terrível, nem se impõe com força. A destruição e a morte são provocadas pela interferência humana (Diabolus) no ecossistema marinho, sem que haja ameaça de retaliação por parte da Mater. Esta, por sua vez, apenas mostra dados que reforçam a necessidade de construir santuários.
É interessante notar que a tragédia provoca ainda mais comoção porque a vítima, mãe-tartaruga, é vista sempre como mãe bondosa e responsável pela manutenção da harmonia familiar. Mesmo que discorde da opção do pai-tartaruga pela “rota bonita”, ela demonstra estabilidade e controle emocional para lidar com imprevistos, sendo atenciosa até mesmo com a estrela-do-mar que colide com o carro. A filha também reflete esse papel, pois ajuda a mãe no cuidado com o caçula e expressa desaprovação pelo “desvio do papai”, ao qual a mãe também reage negativamente. É a filha quem percebe antes dos outros membros da família o barulho da máquina de pesca, grita para que a mãe tome cuidado e, no desenvolvimento, assim como o pai, não consegue conter as lágrimas ao relatar o ocorrido. O pai-tartaruga, no entanto, parece sentir culpa pelas decisões que tomou ao longo da viagem, pois era o responsável por conduzir a volta para casa e ignorou os sinais quando “as coisas ficaram um pouco estranhas”.
Também é importante ressaltar que o vídeo “Jornada das Tartarugas” não sugere, em momento algum, a restauração de um tempo mítico no qual humanidade e natureza convivem em harmonia, e sim o direito das tartarugas viverem em um mundo bastante semelhante ao dos seres humanos. Ao reproduzir o cotidiano de uma família humana, cria-se o sentido de que o herói (Filius) deve proteger seu aliado (Spiritus) porque este, tal como a audiência, tem direito a moradia e segurança. Assim o filme publicitário não contesta a quaternidade mítica original, por mais que se destaque dos outros vídeos, nos quais Filius passa a se reconhecer como Spiritus; nele, é o Spiritus que se “eleva” a Filius por meio de uma antropomorfização que o distingue da natureza.
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