"A vida faz mais do que se adaptar à Terra; ela a modifica. A evolução é uma dança bem engendrada na qual a vida e o ambiente material formam um par. Dessa dança emerge a entidade Gaia." (James Lovelock)

O protótipo hipo-estrutural da quaternidade mítica

Os filmes publicitários foram analisados dentro do esquema quaternário desenhado por Massimo Canevacci no livro “Antropologia do Cinema” (CANEVACCI, 1984), em que ele explora os estudos de Carl Jung sobre a Santíssima Trindade, que reflete as bases da sociedade cristã ocidental, para analisar a estrutura de narrativas cinematográficas. É necessário esclarecer que a perspectiva de Canevacci (1984) se distancia da abordagem junguiana, que o autor critica, referindo-se aos arquétipos como imagens inconscientes não arquetípicas e argumentando que elas são estruturadas historicamente, e não universais (CANEVACCI, 1984).

Por mais que Canevacci (1984) discorde da visão arquetípica de Jung, ele considera importante analisar os problemas simbólicos relacionados a mito, rito e dogma enraizados na hipo-estrutura, que podem levar a efeitos perigosos se escaparem dela. A hipo-estrutura é definida pelo autor como:

patrimônio biopsíquico que não se esgota na dimensão econômica ou cultural, mas compreende em si também a dimensão de natureza, segundo um enfoque metodológico pelo qual ela só é o que é na medida em que é mediatizada por uma relação consciente ou inconsciente com o Homo sapiens (CANEVACCI, 1984, p. 18)

Um hábito hipo-estrutural presente desde os primórdios da humanidade, de acordo com o autor, é o ato de repetir várias vezes a mesma história, recorrendo-se a ela constantemente para se assegurar da ordem das coisas, como acontece com os mitos. Canevacci (1984) realiza uma crítica ao etnocentrismo do cinema a partir do esquema junguiano, considerando que a reprodução da quaternidade nos filmes comerciais se configura como um ritual, de forma semelhante aos mitos arcaicos. A quaternidade original é apresentada como:

Assim, considerando que o cinema, ou a representação fílmica, é produzida em torno da civilização patriarcal cristã-burguesa, Canevacci (1984) aborda Jung para investigar os elementos hipo-estruturais que compõem o filme comercial. Ao reduzir os arquétipos a protótipos, o autor os define como visões que, por meio do cinema, “estabelecem uma gigantesca ponte entre a alienação vivida nessa vida e a angústia existencial de séculos de civilização alienada” (CANEVACCI, 1984, p. 36). O que não diminui o fato de que a Jornada do Herói, examinada no primeiro capítulo, corresponde a esse esquema porque reproduz o “drama cosmológico divino – nascimento, afirmação e morte do herói, depois o sacrifício da ressurreição até a vitória do bem” (CANEVACCI, 1984, p. 47).

De acordo com o esquema junguiano adaptado por Canevacci (1984), Pater corresponde à origem de todas as coisas. Filius é o herói, que encontra suas origens no Pater e deve superar provas para conquistar seu objetivo. Contemporâneo ao Filius, e também o seu oposto, está o Diabolus, que assume a figura de “anti-herói, zona indistinta e incontrolada” (CANEVACCI, 1984, p. 56). Já o Spiritus nega a negação, aliando-se aos Filius para derrotar o inimigo comum, mas acaba sendo conduzido a este por possuir um caráter irracional e irrefletido.

Apesar dos protótipos não constituírem padrões universais, o autor afirma que ainda assim eles mantêm relação com a realidade, servindo como uma chave de interpretação distorcida. Por isso utilizaremos esta chave, previamente aplicada por Camargo (2011) em pesquisas sobre as simbólicas e os valores reproduzidos por produções audiovisuais, para analisar nosso corpus composto por filmes publicitários. A fim de interpretar os valores morais contidos na estrutura quaternária, é útil visualizarmos o original junguiano adaptado a um esquema mais “laico” (CANEVACCI, 1984, p. 68):

Este esquema moral, que reflete um conflito entre o Bem e o Mal, passa do pensamento simbólico-religioso para o cinema preservando seu teor maniqueísta. Segundo Canevacci (1984), por mais que seja possível modificar a narrativa combinando outros elementos já preestabelecidos e universalmente conhecidos, a estrutura quaternária geralmente permanece a mesma, reforçando o estereótipo de um sistema de oposições (CANEVACCI, 1984).

A ligação existente entre essa lógica maniqueísta e os valores judaico-cristãos da sociedade ocidental se evidencia no dogma da Santíssima Trindade. A partir do momento em que o “um”, indefinível, torna-se dual, cria-se um binário, e dentro dessa oposição o Diabolus se configura como adversário do Filius, que seria Cristo. O Filius, que é o filho e o logos, se contrapõe ao Diabolus que, por ser autônomo, não pode ser instrumento divino nem sujeito à soberania de Deus. Ocultar o Diabolus deu origem à Trindade cristã, que o “demoniza”, e com efeito “toda a cultura de massa – positiva, metafísica, materialista – continua a ter por objeto a demonização do outro e a beatificação do próprio si mesmo e do próprio grupo” (CANEVACCI, 1984, p. 55).

Partindo da perspectiva do autor, a estrutura da cruz quaternária é um esquema conservador na medida em que reflete as simbólicas de uma concepção de mundo patriarcal cristã-burguesa, reforçada pelo etnocentrismo do cinema. Para romper com os estereótipos, seria necessário questionar sua lógica fundada em oposições. O que nos leva de volta ao conceito de arquétipo primordial, desenvolvido por Neumann (2021), que reúne em si valores opostos, caracterizando-se, assim como o inconsciente, de forma ambivalente.

O arquétipo primordial corresponde à Grande Mãe, representação de uma divindade como unidade, contendo em si tudo o que a consciência ainda não foi capaz de dividir em antíteses. Por isso Neumann (2021) afirma que, antes da humanidade formar uma figura da Grande Mãe, surge uma ampla variedade de símbolos 

que se referem à sua imagem ainda não determinada e amorfa. Tais símbolos, especialmente os da natureza em todos os seus reinos, estão, de certa forma, marcados pela imagem do Grande Maternal, que vive neles e lhes é idêntica, sejam eles uma pedra, uma árvore, um lago, uma fruta ou um animal. Aos poucos eles se unem à figura da Grande Mãe como atributos e criam o círculo de aspectos simbólicos que cinge a figura arquetípica e se manifesta no mito e no rito (NEUMANN, 2021, p. 26).

Essas associações da Grande Mãe à natureza, ao mundo e à totalidade permitem que, na análise dos filmes publicitários do Greenpeace, o esquema de Canevacci (1984) seja adaptado para verificar se a estrutura quaternária original é reproduzida ou se a sua lógica é contestada. O questionamento dessa lógica seria um objetivo do storytelling ambientalista por possibilitar a integração entre a “humanidade” (representada pela audiência, no papel de herói, mas também pelos responsáveis pela destruição ambiental) e a natureza (na forma da Grande Mãe ou do narrador personagem, que são seres não-humanos antropomorfizados). Assim adaptamos o esquema:

De forma semelhante ao Pater, o simbolismo da Grande Mãe, que aqui denominamos Mater, também representa um Ente Supremo, cujo significado se aproxima ao das imagens arquetípicas do velho sábio ou do self. Pertencem à categoria Mater todas as imagens de harmonia entre humanidade e natureza, além de ideias relacionadas a mitos de criação, origem ou verdade, em particular na forma de códigos de conduta. Já o narrador-personagem, equivalente ao Spiritus, corresponde aos personagens antropomorfizados que se dirigem ao herói durante a narrativa, exercendo diferentes funções, principalmente com o objetivo de envolver a audiência despertando emoções. O herói, representado pelo Filius, é a própria audiência, uma vez que depende dela a ação mais importante da narrativa, que é o próprio objetivo dos filmes publicitários do Greenpeace: agir em prol da causa ambientalista. Por fim, o Diabolus corresponde às imagens de destruição ambiental, que incluem máquinas, poluição, queimadas e mortes, assim como todos os aspectos “sombrios” da interferência humana na natureza.

A adaptação do esquema exige mais uma alteração no sentido do Spiritus para se adequar à imagem arquetípica da Mater, de acordo com a descrição de Erich Neumann (2021). O autor explica, de forma simplificada, que há uma correlação do sol com a consciência patriarcal e da lua com a consciência matriarcal. Diferente da consciência patriarcal, que se eleva como um espírito puro, invisível e imaterial, o aspecto espiritual-lunar do matriarcado não se desliga da materialidade porque a própria feminilidade também não pode fazê-lo. 

A vivência que o matriarcado tem de si pode, como consideramos anteriormente, ser condensada na equação mulher = corpo = vaso = mundo. O fenômeno do mistério da transformação, quando surge o ‘espírito’, é também produto desse Grande Círculo, como sua essência luminosa, seu fruto e seu filho. O espiritual não aparece aqui como a concepção apolínea-solar-patriarcal do ‘ser-em-si’, como existência pura e perpétua, mas permanece ‘filial’, apreendendo-se como criatura surgida historicamente que não omite sua ligação com a terra e a mãe. (NEUMANN, 2021, p. 69)

Neumann (2021) explica que o espírito abstrato do patriarcado é expresso no mito judaico-cristão da criação por meio da palavra (“no princípio era o verbo”), ignorando que a própria palavra só é possível de ser articulada por meio do corpo, afinal, “a palavra ‘nasce’ como essência da totalidade corporal divina, o Grande Círculo” (NEUMANN, 2021, p. 74). Desse modo, o aspecto matriarcal do espírito, que encontra representação na lua, é depreciado pelo aspecto patriarcal e solar porque se preserva anímico, ainda que consista na forma mais elevada de evolução material e telúrica (NEUMANN, 2021). Esta é a representação do Spiritus que analisaremos nos filmes publicitários do Greenpeace. 

Nenhum comentário: