"A vida faz mais do que se adaptar à Terra; ela a modifica. A evolução é uma dança bem engendrada na qual a vida e o ambiente material formam um par. Dessa dança emerge a entidade Gaia." (James Lovelock)

A Grande Mãe

O simbolismo do arquétipo da Grande Mãe é encontrado sobretudo nas figuras e imagens da Grande Deusa, presentes em obras de arte e mitos de toda a humanidade. Há várias figuras de “Grandes Mães” envolvidas por esse círculo de imagens simbólicas, e todas são formas de manifestação de um só Grande Desconhecido, que é a Grande Mãe, o aspecto central do Grande Feminino (NEUMANN, 2021). Tal conceito se relaciona às ideias de natureza, não-cultura e inconsciente abordadas anteriormente, pois na concepção de Neumann (2021): 

o arquétipo primordial caracteriza-se por reunir em si valores opostos, ou seja, positivos e negativos, e essa ambivalência caracteriza a situação original do inconsciente, que a consciência ainda não conseguiu dissecar em antíteses. O homem pré-histórico vivenciou a paradoxal simultaneidade de bom e mau, de amistoso e terrível, como qualidades atribuídas à divindade como unidade; com o correr do tempo, durante o processo de desenvolvimento da consciência, a deusa bondosa e a deusa má passaram a ser reverenciadas cada uma à sua vez, como seres dotados de poderes diferentes. (NEUMANN, 2021, p. 26-27)

De acordo com Jung (2008), todas as nossas ideias e concepções possuem antecedentes históricos, e, se fosse possível traçar o surgimento delas, chegaríamos a formas arquetípicas primordiais, originadas em uma época na qual a consciência ainda não pensava, mas somente percebia. Neumann (2021) observa que, se no homem ocidental contemporâneo o efeito do símbolo compensa a preponderância da consciência, para o homem primitivo o efeito do símbolo era revigorante para a consciência; ou, ainda, seria seu próprio dinamismo criador. Como o autor explica:

Através do símbolo, a humanidade eleva-se de uma fase ancestral de ausência de formas e imagens, e de uma cegueira da psique limitada ao inconsciente, para o estágio da criação de formas, em que a atividade criativa da mente é condição essencial para o surgimento e o desenvolvimento da consciência (NEUMANN, 2021, p. 31). 

Este olhar da Psicologia Analítica considera que, em ambos os sexos, o ego-consciência se caracteriza por um simbolismo masculino, enquanto a totalidade do inconsciente assume um simbolismo feminino. Por isso o estágio matriarcal estaria situado nos primórdios da humanidade, quando o inconsciente predomina sobre o ego e a consciência; portanto, o "Grande Feminino" prevalece sobre o Masculino. É importante frisar que, quando Neumann (2021) se refere a humanidade primitiva ou estágio matriarcal, esclarece que não está se referindo a entidades históricas nem arqueológicas, mas sim a realidades psicológicas. 

A situação psíquica inicial do homem primitivo se compara a estar imerso em um “espaço psicofísico alma-mundo” (NEUMANN, 2021, p. 55), no qual todas as coisas e poderes estão ligados entre si, em uma unidade indissolúvel, que abrange o interior e o exterior, o ser humano e o mundo. Tal estado é simbolizado tanto pela cobra circular, ou ouroboros, como pelo grande vaso do mundo, a grande caverna, ou o próprio Grande Feminino (NEUMANN, 2021). 

É esse estágio mais inconsciente, que Neumann (2021) chama de totalidade urobórica, o melhor exemplo do arquétipo primordial ainda indiferenciado. É ele quem gera o Grande Feminino, Feminino arquetípico, Grande Mãe Urobórica ou Uroboros Maternal; afinal, as transições entre “ouroboros” e o arquétipo primordial do “Grande Feminino” são fluidas, assim como as transições entre este e o arquétipo da Grande Mãe (NEUMANN, 2021). A ambivalência contida no Grande Feminino é traduzida pela presença de um caráter de transformação e de um caráter elementar, interligados sob múltiplas formas. Eles não se excluem, e é muito raro identificar um caráter isoladamente, porém quase sempre podemos observar a predominância de um deles (NEUMANN, 2021).

O caráter elementar possui uma tendência conservadora, enquanto o caráter de transformação enfatiza o elemento dinâmico da psique, que trabalha para colocar o que já existe em movimento, levando à sua modificação. Inicialmente, o caráter elementar integra em si o caráter de transformação, pois este é totalmente dominado pelo Grande Círculo, que “pode vir a ser vivenciado externamente como o mundo ou a natureza, ou internamente como o destino e o inconsciente” (NEUMANN, 2021, p. 44). Neste Grande Círculo, o caráter elementar contém em si o caráter de transformação, do qual depende o existir natural, com suas mudanças regulares, que são culturalmente estruturadas como as estações do ano e o ciclo astrológico, por exemplo. 

O poder do caráter elementar está em reconduzir, de volta ao círculo de eterna igualdade, tudo o que está por ser modificado e o que já se modificou. Porém, à medida em que a personalidade se diferencia e emerge da inconsciência pura, o caráter de transformação passa a ser vivenciado de forma independente, porque atua de maneira a gerar movimento e inquietação, impelindo ao desenvolvimento (NEUMANN, 2021). O que não significa que o caráter elementar seja estritamente negativo, nem o caráter de transformação, apenas positivo: os dois tipos de caráter são ambivalentes – como o Grande Feminino e a Grande Mãe –, o que também caracteriza todo arquétipo. 

O veículo do caráter de transformação é a anima, que se destaca do arquétipo da mãe em um processo semelhante à diferenciação do caráter de transformação a partir do caráter elementar. A anima emerge a partir do Grande Feminino como algo que é “como a alma”, modificando a relação entre o ego-consciência e o inconsciente. Ela movimenta e impulsiona o indivíduo à transformação, estimulando-o a agir e criar, tanto no mundo interior como exterior: 

Enquanto por sua preponderância o caráter elementar do Grande Feminino sempre tende à dissolução do ego e da consciência, no inconsciente o caráter de transformação da anima fascina, mas não aniquila; ele coloca a personalidade em movimento, faz com que ela se modifique e leva-a, finalmente, à transformação (NEUMANN, 2021, p. 47)

A Grande Mãe, cujas expressões podem ser encontradas em obras de diversas culturas, estaria situada entre o Grande Feminino, que se aproxima do inconsciente coletivo por corresponder ao ouroboros maternal, e a anima, que atua em um nível individual porque se desenvolve sempre em relação ao ego-consciência. Como veremos a seguir, diferentes mitologias encontradas ao redor do mundo também servem para interpretar o processo de desenvolvimento da consciência. A pertinência dessa observação foi o que levou as ideias de Jung a se popularizarem no mercado, por meio de uma estrutura narrativa específica: a Jornada do Herói.  

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