"A vida faz mais do que se adaptar à Terra; ela a modifica. A evolução é uma dança bem engendrada na qual a vida e o ambiente material formam um par. Dessa dança emerge a entidade Gaia." (James Lovelock)

Debates sobre forma e estrutura

Os estudos sobre a estrutura narrativa, que vêm desde Aristóteles, passando pelo Estruturalismo até os métodos de storytelling à venda no mercado, avançaram sobretudo no campo literário. Acompanhando as transformações desencadeadas por Ferdinand de Saussure, que tornavam os estudos linguísticos cada vez mais científicos, dois movimentos deram o passo inicial para o desenvolvimento de estudos literários com foco na materialidade do texto, partindo de uma concepção imanente da literatura: o New Criticism (Nova Crítica) e o Formalismo Russo.  

Teóricos da Nova Crítica diferenciavam a história narrada e o modo com que ela é construída sob a forma de um texto, chamando-as de “estória” (story) e de “enredo” (plot), respectivamente (FRANCO JR, 2009). De forma semelhante, os formalistas russos constataram que a narrativa acontecia em dois planos: fábula e trama. A fábula é vista como a história narrada, em si, enquanto a trama se refere ao modo com que uma história é narrada. Ambos os movimentos poderiam ser abordados neste capítulo, porém optamos destacar os formalistas pelo fato de terem dado um dos passos mais importantes da teoria literária no século XX, possibilitando o estudo dos elementos específicos da literatura. Um reflexo disso é que, até hoje, a abordagem formalista-estruturalista atende bem à análise de textos narrativos (FRANCO JR, 2009). 

Com os formalistas, a forma passa a ser vista como um algo dinâmico, regido por tensões e ambiguidades. O narrador se torna uma categoria de personagem, enquanto ação e personagem são elementos que se vinculam à noção de motivo, ou “unidade temática mínima”. Também são introduzidas noções importantes, como motivo, motivação e tema: o tema é constituído por pequenos elementos temáticos, dispostos numa ordem, e esses elementos são os motivos, definidos como unidades temáticas mínimas; já a motivação é a articulação de motivos que constituem a temática de uma obra. Há ainda a intriga, relacionada à noção de conflito dramático, este último desencadeado pelas ações dos personagens (FRANCO JR, 2009). 

Como vimos no primeiro capítulo, a influência do Formalismo Russo não se restringiu aos estudos literários, mas se estendeu ao campo da Antropologia por meio da contribuição entre Claude Lévi-Strauss e o formalista Roman Jakobson. Por sua vez, a influência do Estruturalismo na teoria literária levou à inauguração da Narratologia em 1966, uma disciplina que se propôs a estudar narrativas a partir de sua estrutura e elementos, cujo marco foi a publicação de uma edição especial da revista Communications, incluindo ensaios de Algirdas-Julien Greimas, Tzvetan Todorov, Gérard Genette, Claude Bremond e Roland Barthes. Um dos pontos que os autores tinham em comum era o fato de suas teorias terem sido influenciadas por Vladimir Propp¹, um proeminente formalista russo. Inclusive, o próprio Lévi-Strauss chegou a afirmar que poderia ter sido influenciado por Propp de forma indireta, tendo Jakobson como intermediário, porque só chegou a ler os estudos de Propp anos após ter desenvolvido a Antropologia Estrutural (LÉVI-STRAUSS, 1993). 

Vladimir Propp (2006) contribuiu com o estudo das narrativas sobretudo por ter publicado um extenso estudo sobre contos do folclore russo, chamado “Morfologia do Conto Maravilhoso”, em 1928. Em sua abordagem formalista, o autor considera a divisão sintática de uma oração (sujeito e predicado) como o modelo básico das regras narrativas, pois mesmo substituindo um ou outro, a estrutura da oração permanece a mesma. Partindo desse princípio, ele reduz os contos do folclore russo a 31 elementos fixos, ou funções – definidas como ações significantes. que constituem a unidade básica da linguagem narrativa –, que podem ser agrupadas em sete “esferas de ação”. As funções sempre seguem a mesma sequência, mesmo que os contos não contenham todas elas (EAGLETON, 2003; BONNICI, 2009). Nas palavras de Lévi-Strauss, através de Propp o formalismo chegou à descoberta de que só existe um único conto: “Mas ele se reduziria à uma abstração, tão vaga e tão geral que ela nada nos ensinaria sobre as razões objetivas que fazem com que exista uma infinidade de contos particulares” (LÉVI-STRAUSS, 1993, p. 40).

Assim, Lévi-Strauss – que interpretava os mitos como uma espécie de linguagem, passíveis de decomposição em unidades menores que adquirem significado apenas em relação umas às outras – contesta algumas ideias de Propp, entre elas a hipótese de que os contos populares podem ter origem em contos arcaicos: "mitos e contos exploram uma substância comum, mas cada um a seu modo" (LÉVI-STRAUSS, 1993, p. 136). Apesar de concordar que o conto é comparável ao mito, considera que o primeiro é como um mito em miniatura, composto pelas mesmas oposições em escala reduzida, o que tornaria os contos ainda mais difíceis de estudar (LÉVI-STRAUSS, 1993).

De forma resumida, podemos dizer que os teóricos do Estruturalismo, com análises inspiradas pelos modelos de Propp e de Lévi-Strauss, “tentaram encontrar uma gramática universal da narrativa que revelasse como a mente humana organiza sua experiência” (BONNICI, 2009, p. 136). A generalização desse modelo para outros textos foi o que levou à formação da Narratologia como um novo campo de estudos (EAGLETON, 2003). Os seus métodos viriam a ser aplicados ao cinema por Christian Metz (1972), mas apesar de fornecerem um amplo arsenal de ferramentas para analisar narrativas no audiovisual, não nos aprofundaremos neles, pois o que nos interessa são as narrativas construídas com o objetivo mercadológico de alcançar o maior público possível.

Ainda assim, podemos perceber que o modelo proposto por Vladimir Propp (2006) possui semelhanças em relação à Jornada do Herói (CAMPBELL, 2013). As suas contribuições também influenciaram Christopher Vogler (2015), em especial no que se refere aos elementos que ele chama funções, que em “A jornada do Escritor” foram associados aos arquétipos (VOGLER, 2015). Optamos por utilizar este último como referencial para análise dos filmes publicitários principalmente pelo fato de ter se tornado mais popular no mercado. Ao voltar o foco para nosso objeto de pesquisa, o filme publicitário, abordaremos o storytelling na publicidade e no cinema comercial para explorar suas intersecções.

>>>

¹   Algirdas-Julien Greimas tenta chegar a uma gramática universal da narrativa, aplicando uma análise semântica da estrutura da oração a todos os tipos de narrativas e incorporando o conceito de actante como uma unidade estrutural (EAGLETON, 2003). Já Tzvetan Todorov realiza uma análise “gramatical” das obras, considerando os personagens como substantivos, seus atributos como adjetivos e suas ações como verbos (BONNICI, 2009). Por sua vez, Claude Bremond aponta as possibilidades lógicas da narrativa na cultura de massas, e Gérard Genette se destaca por identificar categorias centrais na análise narrativa, como ordem, duração, frequência, modo e voz (BONNICI, 2009). 

Nenhum comentário: