"A vida faz mais do que se adaptar à Terra; ela a modifica. A evolução é uma dança bem engendrada na qual a vida e o ambiente material formam um par. Dessa dança emerge a entidade Gaia." (James Lovelock)

Intersecções entre mito e publicidade

Ao longo da tese “Linguagem e Mito no Filme Publicitário”, Camargo (2011) demonstra que o mito e o filme publicitário operam sobre as mesmas estruturas e sistemas de significação. As principais intersecções entre o texto mítico e o texto publicitário são apresentadas como: uma narrativa fantástica com base em imagens, lugares, situações e personagens impressionantes; a supressão do tempo histórico; as marcas do ritual; a totalidade representada pela junção ou complementaridade entre homem e natureza; e a ressignificação permanente do imaginário coletivo (CAMARGO, 2011, p. 14). No corpus de sua pesquisa, o autor observa o uso de recursos como a animização e a antropomorfização de produtos e elementos da natureza, bem como a criação ou recriação de simbologias. Camargo (2011) compreende que a manifestação do mito no filme publicitário “alimenta a busca incessante pela completude, o eterno retorno às origens existenciais do homem” (CAMARGO, 2011, p. 12).  

Essas referências míticas, quando empregadas em produções audiovisuais impactantes, podem ter grande influência na decisão de compra dos consumidores. É o que afirmam as autoras do livro “O Herói e o Fora-da-lei” (MARK; PEARSON, 2021), que instrui profissionais de marketing a interpretarem identidades de marcas a partir de padrões presentes no imaginário coletivo: 

O impacto do marketing de marca, especialmente a propaganda, é incomensurável. Em grande medida, a atenção determina a história. Ou seja, aquilo que focalizamos e pelo qual sentimos ressonância vem reforçar padrões de consciência que, por sua vez, direcionam a ação. A publicidade da tevê captura a atenção por causa de todo o talento, energia e inteligência que entram nos comerciais para que eles sejam mais atraentes do que os programas em cujos intervalos são veiculados. (MARK, PEARSON, 2021, p. 359)

Se esses padrões de consciência podem levar o público a estabelecer vínculos com as marcas em um nível inconsciente, incorporar textos míticos a campanhas e situações publicitárias exige maior responsabilidade ética da parte de seus produtores. No artigo “Publicidade e Mito”, Malena Contrera ressalta, por meio de uma análise de como a mitologia opera em conjunto com a publicidade, que o processo comunicativo é complexo, rico e contém motivações profundas que, mesmo quando não são visíveis, operam através das técnicas e peças publicitárias (CONTRERA, 2002). 

Contrera (2002) afirma que o poder do universo mítico se torna mais eficiente à medida que opera de forma inconsciente. A questão ética levantada pela autora é se os criadores das peças publicitárias têm consciência de lidar com registros tão poderosos ao usá-los para influenciar a formação de valores e hábitos de consumo. Esses registros são os arquétipos, um conceito desenvolvido pela Psicologia Profunda cuja origem vem do grego archetypon, equivalente a modelo de seres criados, padrão exemplar, protótipo (CONTRERA, 2002).

É possível que, por se tratar de conteúdos tão arraigados na cultura, nem mesmo as equipes de criação publicitária estejam conscientes do uso de referências mitológicas, o que reforça a importância de atentar para a responsabilidade de influenciar pessoas em nível inconsciente. As autoras de “O herói e o fora-da-lei” (2021) também alertam sobre o cuidado no uso desses padrões para se conectar aos clientes:

Pela primeira vez na história da humanidade, quebraram-se os mitos compartilhados e agora as mensagens comerciais tomam o lugar das histórias sagradas compartilhadas. Sabemos, no fundo do coração, que uma profissão voltada a vender produtos nunca preencherá esse vazio. Se pararmos para pensar em quantas pessoas estão encontrando no consumo o único significado que têm na vida, não nos sentimos orgulhosos; sentimo-nos tristes ou mesmo ultrajados. (MARK; PEARSON, 2021, p. 361)

No caso dos filmes publicitários do Greenpeace, o objetivo de suas mensagens não é vender um produto específico, mas engajar pessoas em torno da causa ambiental, persuadindo a audiência a apoiar campanhas promovidas pela organização ambientalista. Evidenciando o objetivo de aproximar audiência e natureza, há um arquétipo que se destaca nas produções audiovisuais: a Grande Mãe. Esse arquétipo (ou protótipo) é representado por uma Mãe Natureza, que sugere a restauração de uma sociedade na qual os seres humanos vivem em harmonia com os outros seres, como um ideal matriarcal¹. Citada na introdução a partir da deusa grega Gaia, essa imagem arquetípica voltará a ser abordada mais adiante e ganhará destaque na análise do vídeo “Eu sou a Amazônia” (2020). 

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¹ Uma utopia matriarcal também é associada ao ecofeminismo, que compartilha ideais, como a unidade das espécies e a unidade da matéria, com o ambientalismo e o pensamento ecológico (CASTELLS, 2018). De acordo com Ynestra King (1988), o ecofeminismo surge durante a segunda onda do feminismo e adota o conceito de patriarcado para definir não só a dominância dos homens na sociedade, como outras formas de exploração humanas, considerando que a causa da exploração das mulheres estaria ligada à sua suposta proximidade com a natureza. No lugar de tentar se tornar parte da cultura masculina, as ecofeministas celebram a identificação com a natureza, por meio das artes e da formação de grupos e comunidades. Sob influência desse feminismo cultural, ao longo dos anos 1980 se desenvolveu com maior força um “movimento da espiritualidade feminista” (KING, 1988, p. 136) baseado no respeito à diversidade e unidade de todas as coisas vivas.


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