"A vida faz mais do que se adaptar à Terra; ela a modifica. A evolução é uma dança bem engendrada na qual a vida e o ambiente material formam um par. Dessa dança emerge a entidade Gaia." (James Lovelock)

Os sentidos do mito

Desde a Grécia Antiga, os mitos têm sido reduzidos à mera ficção na sociedade ocidental, uma perspectiva reforçada sob o domínio judaico-cristão, que considera duvidoso tudo o que não consta em suas próprias escrituras. A concepção dos mitos como algo significativo só foi retomada com os avanços da Antropologia na virada do século XX, a partir do estudo de sociedades em que eles fornecem modelos para a conduta humana (ELIADE, 1972). A definição antropológica dos mitos como tradição sagrada, revelação primordial ou modelo exemplar é reconhecida por autores como Mircea Eliade, que publicou o livro “Mito e Realidade” em 1963.

Adotando uma perspectiva histórico-religiosa, Eliade (1972) investiga como os mitos conferem significado e valor à existência nas sociedades consideradas arcaicas, onde possuem o caráter de histórias verdadeiras, ou seja, que se referem à realidade. Eles justificariam formas de conduta e dariam significado às atividades humanas, ensinando ao homem arcaico tudo aquilo que o constitui existencialmente: “a principal função do mito consiste em revelar os modelos exemplares de todos os ritos e atividades humanas significativas: tanto a alimentação ou o casamento, quanto o trabalho, a educação, a arte ou a sabedoria” (ELIADE, 1972, p. 13).

Essas histórias primordiais, além de dotadas de caráter sagrado, exemplar e significativo, narram sempre uma “criação” cujos personagens são os Entes Sobrenaturais. Os mitos descrevem momentos em que o sagrado, ou “sobrenatural”, irrompe, momentos que fundamentam nossa realidade, transformando o mundo no que é hoje (ELIADE, 1972). Nas sociedades simples das Américas, por exemplo, eram relatados mitos sobre um Fim do Mundo já ocorrido, em que a humanidade teria sido aniquilada, deixando poucos sobreviventes. Esse Fim do Mundo, que corresponde mais ao fim de uma Humanidade, seria seguido pelo surgimento de uma nova Humanidade. 

A principal causa do Fim do Mundo são os pecados cometidos pela Humanidade anterior, que levam à necessidade de sua regeneração. Eliade (1972) afirma que, entre as diversas mitologias de Fim do Mundo encontradas nas Américas, a maioria trata de uma teoria cíclica, ou da crença de que uma nova Criação sucederá a catástrofe, ou de que essa regeneração universal ocorrerá sem uma grande destruição, pois só os pecadores perecerão. 

Em suma, esses mitos do Fim do Mundo, implicando mais ou menos claramente a recriação de um novo Universo, exprimem a mesma ideia arcaica e extremamente difundida da ‘degradação’ progressiva do Cosmo, requerendo sua destruição e sua recriação periódicas. Desses mitos de uma catástrofe final, que será ao mesmo tempo o sinal anunciado da iminente recriação do Mundo, é que surgiram e se desenvolveram os movimentos proféticos e milenaristas das sociedades primitivas contemporâneas. (ELIADE, 1972, p. 58) 

Os estudos de Lévi-Strauss também compreendiam os mitos como histórias que se referem sempre a eventos passados, como “antes da criação do mundo” ou “nos primórdios”. Porém, ainda que situados em um tempo distante, os mitos seriam dotados de um valor intrínseco pelo fato de os eventos relatados formarem uma estrutura permanente, que se refere não só ao passado, mas ao presente e ao futuro. Desse modo, o mito se situa ao mesmo tempo na linguagem e além dela, possuindo uma estrutura que é, ao mesmo tempo, histórica e a-histórica, constituindo uma linguagem que trabalha em um nível mais elevado do que as outras. Isso explicaria por que as mitologias são tão poderosas: “Uma comparação ajudará a precisar essa ambiguidade fundamental. Nada se parece mais com o pensamento mítico do que a ideologia política” (LÉVI-STRAUSS, 2008, p. 224).

De acordo com Eliade (1972), houveram pelo menos duas abordagens modernas e supostamente secularizadas para os mitos do Fim do Mundo – o comunismo e o nazismo –, além dos milenarismos primitivos, que “anunciam o Fim deste mundo e o início de uma era de abundância e beatitude” (ELIADE, 1972, p. 65). No exemplo do comunismo, o proletariado seria composto pelos escolhidos que lutam contra o mal, representado pela burguesia, sendo compensados pelo seu sofrimento ao conquistar a comunidade total: um novo mundo regenerado, purificado dos pecados (ELIADE, 1972). 

É curioso notar que, assim como o autor observa o ressurgimento da mitologia escatológica na Europa durante a primeira metade do século XX em movimentos políticos, a própria atuação do Greenpeace foi inspirada por uma lenda do mesmo gênero, popular nos anos 1970, que os levou a adotar a alcunha de “Guerreiros do Arco-íris”:

Quando a Terra cair doente e os animais tiverem desaparecido, surgirá uma tribo de pessoas de todos os credos, raças e culturas que acreditará em ações e não em palavras e devolverá à Terra sua beleza perdida. A tribo será chamada de ‘Guerreiros do Arco-íris’ (EYERMAN; JAMISON, 1989, apud. CASTELLS, 2018, p. 231)

Este mito sobre o Fim do Mundo acatado pelo Greenpeace parte de uma ideia de iminente desaparecimento da vida no planeta, atribuída a povos indígenas norte-americanos¹ (CASTELLS, 2018). Ao recuperar um imaginário paradisíaco de retorno à natureza, o “Fim do Mundo” prometido pelos Guerreiros do Arco-íris traria a restauração do que Eliade chama de “beatitude humana” (ELIADE, 1972, p. 67). 

É do nosso interesse entender melhor o potencial persuasivo das referências míticas presentes no storytelling audiovisual do Greenpeace, e como elas podem influenciar formas de conduta ou justificar as atividades da organização. Esse entendimento será essencial para analisarmos os sentidos construídos pelos filmes publicitários do Greenpeace. 

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¹    O pesquisador Michael Niman, que estudou a comunidade contracultural Rainbow Family of Living Light, afirma que o mito citado não possui origem na cultura nativa americana, e que o livro no qual se encontra seria um tratado evangelizador. “The roots of that myth go back to a book called Warriors of the Rainbow. It was basically an evangelical Christian tract which was published in 1962. If anything, it was an attack on Native culture. It was an attempt to evangelize within the Native American community.” (TARLETON, 2022). 


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