"A vida faz mais do que se adaptar à Terra; ela a modifica. A evolução é uma dança bem engendrada na qual a vida e o ambiente material formam um par. Dessa dança emerge a entidade Gaia." (James Lovelock)

Marcas em crise, narrativas em disputa

Em “Storytelling: La máquina de fabricar historias y formatear las mentes”, Christian Salmon explica como o storytelling se popularizou nos EUA e alerta quanto ao potencial de influenciar pessoas contido no ato de contar histórias, cada vez mais popular entre os “gurus do capitalismo”. De acordo com o autor, as técnicas de storytelling emergiram nos EUA em meados da década de 1990, tomando formas mais sofisticadas à medida que os anos se passavam, tanto no universo da gestão empresarial, quanto no da comunicação política. Desde os tradicionais contadores de histórias até experiências de digital storytelling, suas técnicas mobilizam diversos tipos de narrativas. Até mesmo grandes empresas e o exército americano, característicos por sua seriedade e expertise, passaram a fazer uso de histórias ficcionais, úteis para se conectar com os colaboradores (SALMON, 2010).

Esse storytelling revival é constatado em diversas áreas, do jornalismo até métodos terapêuticos, sendo chamado por alguns pesquisadores de virada narrativa, ou o despontar de uma nova era narrativa (SALMON, 2010). Se antes as histórias eram vistas como uma forma de comunicação voltada para crianças, ou uma atividade de lazer – que interessaria apenas aos estudos literários, nos campos de linguística, retórica, gramática textual e narratologia –, para Salmon (2010) o fenômeno que surge com a expansão do uso do storytelling, reflete uma tendência no uso de narrativas como forma de controle.

O autor explica que a primeira área a tornar aparente o sucesso da abordagem narrativa foi a de Ciências Humanas, descrevendo-a como uma “virada narrativista” em meados dos anos 1990. Estendendo-se gradativamente para as Ciências Sociais, apenas nos anos 2000 a narrativa passaria a ser vista em áreas cada vez mais diversas, como Psicologia, Direito e Ciências Cognitivas. Essa virada coincide com a expansão da Internet nos EUA, bem como os avanços de novas tecnologias e informação e comunicação, o que facilitou para que as histórias se espalhassem mais rapidamente. 

No entanto, Christian Salmon (2010) constata que a maior influência do storytelling na publicidade está diretamente relacionada a uma mudança na forma de enxergar grandes corporações, ou, mais especificamente, grandes marcas. Tal transformação é evidenciada com a substituição da brand image, que dominava o marketing nos anos 1980, pela brand story no fim dos anos 1990 (SALMON, 2010). No começo dos anos 2000, o número de marcas registradas nos Estados Unidos aumentava significativamente, atingindo 140 mil marcas registradas somente em 2003. Novas marcas eram introduzidas ao mesmo tempo em que marcas estabelecidas se esforçavam para fortalecer sua presença, o que aumentava a competitividade e levava grandes empresas a investirem bilhões de dólares em publicidade. Porém, os consumidores americanos mostravam-se cada vez menos leais. Salmon (2010) relata como diversas marcas que, nos anos noventa, simbolizavam a prosperidade das multinacionais, bruscamente perderam seu prestígio e poder comercial no começo dos anos 2000. A publicidade parecia perder sua força e credibilidade, como se os consumidores tivessem passado a reagir negativamente ao excesso de promoções, pseudoinovações e marketing massivo (SALMON, 2010).

Nesse contexto, os consumidores já não podiam mais ser identificados apenas por sua categoria socioprofissional, pois ela não informava mais seus hábitos e desejos. Eles estavam se tornando “especialistas”, como reflexo de uma tendência crescente ao consumo responsável, ou mesmo ao “prossumo – do inglês prossumption, junção entre as palavras produção e consumo” (FONTENELLE, 2017, p. 131). Retornaremos ao tema no final do capítulo, observando que as ONGs também parecem ter se adequado a essa tendência mercadológica.

De acordo com Salmon (2010), o fim da era da publicidade de marcas foi acelerado com o surgimento dos novos meios de comunicação e das inúmeras possibilidades de difundir conteúdo pela internet. Mas para alcançar um maior número de pessoas, ou “viralizar”, as histórias contadas por marcas devem corresponder às expectativas e visões de mundo do público visado. “Quando são utilizadas na web, transformam a nós mesmos em storytellers, em propagadores de histórias, já que a fascinação que inspira uma boa história nos impele a repeti-la” (SALMON, 2010, p. 57, tradução da autora) . 

Uma das marcas mais impactadas pelas mudanças nos hábitos de consumo foi a Nike, que ainda nos anos 1990 passou a ser alvo de denúncias de ativistas do movimento antimarcas, após a circulação de notícias sobre a exploração de trabalhadores de suas fábricas localizadas em países asiáticos, como Vietnã e Indonésia (KLEIN, 2000). Por meio de manifestações e performances artísticas, os ativistas adotavam uma postura antiglobalização, desmentindo a imagem institucional de corporações transnacionais e apontando as contradições entre as mensagens transmitidas pela publicidade e as condições de produção dos itens vendidos (FONTENELLE, 2017). Imagens das sweatshops, traduzidas literalmente como “fábricas de suor”, escancaravam a exploração dos trabalhadores nos países subdesenvolvidos (SALMON, 2010).

Para solucionar essa crise de imagem global, que associava a Nike a histórias de sofrimento e exploração, a decisão tomada pela empresa parecia simples: em resposta às narrativas que confrontavam a imagem da marca, contariam histórias edificantes, capazes de reerguê-la. Para construir essas narrativas, a Nike recorreu aos serviços de especialistas em storytelling:

Em agosto de 1999, Amanda Tucker, diretora do programa de combate ao trabalho infantil da Organização Internacional do trabalho, foi recrutada pela Nike. Na mesma época, a Nike encomendou um relatório a acadêmicos norte-americanos. Um deles, David M. Boje, um pioneiro do storytelling organizacional, havia participado nos anos noventa das campanhas anti-Nike e realizado com seus alunos um trabalho teórico de desconstrução da marca (SALMON, 2010, p. 52, tradução da autora) 

Considerado por Salmon (2010) um dos pesquisadores mais influentes na gestão de crise da Nike, podemos dizer que David M. Boje contribuiu significativamente com o storytelling aplicado à gestão de marcas. De acordo com seus estudos, as empresas constituem organizações narrativas nas quais circulam múltiplas histórias, em constante diálogo, que se opõem ou se complementam. Essa ideia, desenvolvida a partir de autores como Roland Barthes, Guy Débord e Mikhail Bakhtin, levou o autor a elaborar o paradigma de uma nova organização pós-moderna, em constante mudança (SALMON, 2010).

Em “Storytelling Organizational Practices” (2014), David M. Boje expõe sua teoria aplicada à comunicação organizacional, na qual classifica as narrativas em três tipos: histórias estruturadas com começo, meio e fim, ou BME (beginning-middle-ending), histórias de vida (living stories) e antenarrativas. Para o autor, o uso do storytelling nas organizações envolve compreender a construção de sentido que acontece, de forma pragmática, entre storytellers e suas audiências.

Na classificação de Boje (2014), as histórias de vida são aquelas contadas pelos colaboradores no dia a dia, a fim de compartilhar experiências. A narrativa BME, por sua vez, possui uma forma estruturada, um enredo. Já o conceito de antenarrativa foi elaborado por Boje (2014), a fim de descrever as relações entre diferentes tipos de narrativas e histórias de vida: o “ante” contém os sentidos de “antes” e de “aposta” (BOJE, 2014, p. 10). Assim, antenarrativas seriam apostas do storytelling no futuro, antes que essas narrativas se estabeleçam de acordo com a estrutura das narrativas BME, ou com sua forma, estilo ou função. O duplo sentido do “ante” está no “antes” da narrativa adquirir coerência, e na “aposta” no futuro que está chegando, por isso os gêneros das antenarrativas são “in between”, sempre em movimento para conectar histórias de vida e narrativas BME (BOJE, 2014). 

Cabe ressaltar que os conceitos de Boje (2014) foram desenvolvidos dentro de estudos sobre o uso de narrativas por gestores e suas apostas no futuro das organizações, que mudam constantemente. Mas sua teoria também parece adquirir um caráter mais geral, valendo-se até de associações com a física quântica: 

Não existe apenas um futuro; múltiplos são possíveis, até o momento em que, como dizem na física quântica, algo colapsa as ondas de potencialidade para outra direção. Antenarrativas, essas apostas no futuro, colapsam as possibilidades para algumas realidades (BOJE, 2014, p. 10, tradução da autora).

Christian Salmon (2010) interpreta o storytelling management como uma forma de controlar a produção e a circulação de histórias dentro das organizações, buscando orientar a produção de relatos por meio de formas sistematizadas de comunicação interna. Esse controle só teria se tornado possível devido a uma tomada de consciência, ocorrida durante a virada narrativa, de que as empresas seriam “microcosmos” no qual se produzem e circulam inúmeras histórias, independentemente do nível hierárquico dos colaboradores (SALMON, 2010).

De forma semelhante ao que explicam os teóricos de gestão organizacional, explica Salmon (2010), a adoção do storytelling pelo marketing vai além de uma recolocação das marcas no mercado e passa a incluir uma visão de mundo que é projetada em toda a sociedade:

O objetivo do marketing narrativo já não é simplesmente convencer o consumidor a comprar um produto, mas provocar sua imersão em um universo narrativo, inseri-lo em um universo acreditável. Já não se trata de estimular a demanda, mas de oferecer uma história de vida que propõe modelos de conduta integrados que incluem certos atos de compra, através de verdadeiras engrenagens narrativas (SALMON, 2010, p. 63, tradução da autora). 

A possibilidade de incluir o consumidor em uma narrativa persuasiva, na qual ele desempenha o papel principal, para que uma organização alcance determinado fim, é o que atrai o mercado em direção ao storytelling. Não estamos mais falando das narrativas ocidentais que, segundo Aristóteles (2004), devem ter início, meio e fim, formando uma unidade com enredo linear, para provocar uma catarse. Nem dos mitos que, de acordo com Mircea Eliade (1972), não só explicam o mundo e moldam o comportamento das pessoas envolvidas por eles nas mais diversas sociedades, mas transformam a realidade do homem arcaico: 

Conhecer os mitos é aprender o segredo da origem das coisas. Em outros termos, aprende-se não somente como as coisas vieram à existência, mas também onde encontrá-las e como fazer com que reapareçam quando desaparecem (ELIADE, 1972, p. 18). 

Pelo olhar de Salmon (2010), parece que o storytelling, à semelhança dos mitos, possui o poder mágico de interferir na realidade de quem conta ou escuta suas histórias. Porém, se os mitos eram acusados pelos racionalistas gregos de serem ficção porque não representavam os valores ideais de seus deuses, o storytelling mercadológico perpetua valores que tampouco servem a “deuses”, mas aos objetivos das organizações que o utilizam, buscando cada vez mais eficiência na conquista dos consumidores. A seguir veremos um exemplo de padrão narrativo popular que, tendo o cinema como laboratório, estabeleceu sua própria forma diante do público, quase que espontaneamente. 

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